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Jorge Martins

O massacre judaico de Lisboa de 1506

A história dos judeus em Portugal foi obliterada da nossa memória colectiva. Frequentemente se invoca – como que para compensar esse esquecimento – que os portugueses (todos nós) têm forte ascendência judaica. E ficamo-nos por esta constatação tão propícia a inócuos cálculos percentuais, que não contribuem em nada para olhar a questão de frente, estudá-la e fazê-la constar da nossa História enquanto povo. Basta folhear os compêndios generalistas de História de Portugal ou os manuais escolares de História dos ensinos básico e secundário, para constatar que omitem sistematicamente a presença judaica no nosso país, como se não tivesse existido, apagando-a da nossa história nacional. A história dos judeus portugueses tornou-se assim uma preocupante história invisível.

O Édito de Expulsão de 1496, transmutado em baptismo forçado na Pascoela do ano seguinte – o mesmo ano em que Vasco da Gama iniciava a sua epopeia atlântica em direcção à Índia – constituiu uma ruptura régia com os “seus judeus”, importantes demais para o reino, para serem liminarmente excluídos da sociedade e da economia portuguesas. Todas as pequenas manifestações de intolerância para com os judeus, anteriores àquela data, foram pronta e eficazmente sanadas pelo poder régio. Mas, o pior estava para vir, com a introdução, em 1536, do criminoso tribunal da Inquisição. No entretanto, antes de o intolerante rei D. João III ter arrematado o “fero monstro” a peso de ouro, junto da Santa Sé, após mais de uma década de obscuras negociatas diplomáticas em Roma, ocorreu o maior massacre de judeus registado em Portugal, nos dias 19, 20 e 21 de Abril de 1506. É deste tristemente célebre episódio, que vitimou mais de dois mil judeus lisboetas.

Naquela primavera de 1506, a peste assolava a capital, situação dramaticamente ampliada pela seca e pela fome. O rei D. Manuel I refugiara-se em Abrantes. As ruas exibiam os horrores da tragédia. O convento de S. Domingos estava repleto de desesperados cristãos – velhos e novos – esperando um sinal divino que acudisse àqueles que não tinham posses ou condições de fuga. Constava que o milagre se manifestara no dia 15 desse mês, justamente naquele templo dominicano. A vontade de crer era demasiado forte para descrer em qualquer sinal, por pequeno ou inacreditável que fosse. A predisposição faz a ocasião. Era a única esperança. Não se podia desperdiçar uma fugaz manifestação divina.

E aconteceu. O sinal implorado com toda a convicção repetiu-se. Uma luz brilhou, incandescente, no crucifixo da capela da Igreja. Todos viram. Todos rejubilaram. Todos se sentiram recompensados pela crença profunda e sincera. Todos? Não. Na verdade, houve um que ousou duvidar da natureza divina da luz. Teria sido o reflexo de uma das muitas candeias acesas naquele convento, para chamar a atenção do Omnipotente. Incautamente, proferiu as palavras proibidas, indesejadas, demolidoras da esperança compensada. Era um cristão-novo. Heresia!

Foi numa conjuntura favorável ao antijudaísmo, decorrente do édito de expulsão de 1496 e do baptismo forçado de milhares de judeus em 1497, que o citado cristão-novo cometeu a imprevidência. Mal proferiu a contraproducente “blasfémia”, o povo caiu sobre ele, arrastou-o para a rua e agrediu-o barbaramente até cair inanimado. Prostrado no Largo de S. Domingos, foi identificado pelo irmão, que se debruçou sobre o seu cadáver e gritou lancinantemente: “Quem matou meu irmão?!”. Acto contínuo, foi igualmente executado pela turba, que, de pronto, acendeu uma fogueira e queimou os dois infelizes cristãos-novos. Num clima de intolerância crescente, surgiu um frade que proferiu um inflamado sermão antijudaico, enquanto o povo se aglomerava em torno da redentora fogueira, aos quais se juntariam mais dois frades dominicanos, Frei João Mocho e Frei Bernardo, exibindo o crucifixo “milagreiro” e fazendo apelos sanguinários contra os judeus: “Heresia! Heresia! Destruam o povo abominável!...”.

E assim se espalhou o povo pela ruas de Lisboa, procurando cristãos-novos que passavam desprevenidos, forçando a entrada nas suas casas, capturando aqueles que se haviam recolhido nas igrejas, carregando mortos e vivos para as fogueiras que se acendiam na capital. Foram três dias de terror, pilhagem e carnificina, de que resultariam, de acordo com os cronistas coevos, entre dois e quatro mil mortos.

O rei D. Manuel I protelou a sua intervenção no motim e só o fez quando já não havia vítimas para queimar nas fogueiras. Nem D. Álvaro de Castro, o governador da Casa do Cível, nem Aires da Silva, o regedor da Casa da Suplicação conseguiriam demover a populaça tresloucada, quando tentaram acalmar os ânimos. Embora tardiamente, o rei, informado dos factos quando passava por Avis em direcção a Évora, para visitar sua mãe enferma, castigou duramente o povo de Lisboa: sentenciou os responsáveis pela chacina a penas corporais e à perda dos seus bens a favor da Coroa; mesmo os que não tivessem participado no massacre e no saque perderiam um quinto dos seus bens; suspendeu a eleição dos representantes da Casa dos Vinte Quatro e dos seus quatro representantes à vereação municipal lisboeta; retirou as honrarias da cidade; mandou executar cerca de meia centena de amotinados e os dois frades dominicanos, frei João Mocho e frei Bernardo, verdadeiros instigadores do massacre.

Este dramático episódio antijudaico – o mais sanguinário de todos os conhecidos no nosso território – é um autêntico laboratório para a avaliação do antijudaísmo português. Com efeito, como na generalidade das outras manifestações antijudaicas em Portugal, foi o indefensável anti-semitismo clerical que potenciou uma eventual animosidade popular latente. Ao invés de a condenar, os dominicanos atiçaram o ódio, participaram na carnificina, tornando-se nos principais responsáveis morais e materiais do massacre judaico de 1506.

Trinta anos depois, a Inquisição era estabelecida, por acção irredutível de D. João III, proporcionando à facção intolerante da Igreja Católica, umas perseguição oficial, estatal e ilimitada, dos crimes de “heresia”, que é como quem diz, do judaísmo persistente, apesar do fundado terror experimentado, tanto por cristãos-novos como por cristãos-velhos. O massacre de 1506 foi o prenúncio da vitória da intolerância e constituiu um corte com as práticas tolerantes dos nossos primeiros monarcas em relação às comunidades judaicas até finais do século XV. A Inquisição, ao contrário do que alguns autores têm postulado, não veio servir de mediação entre a população antijudaica e os “hereges”, à mercê de pogromes incontroláveis.

Os acontecimentos de 1506 constituíram uma premonição, não da inevitabilidade do estabelecimento da Inquisição, mas da inabalável vontade clerical e régia de extirpar o pluralismo religioso e étnico da sociedade portuguesa. O Santo Ofício não foi um “mal necessário” para evitar o pior. Foi, justamente, o mal maior, a consagração da intolerância, a vitória dos verdadeiros anti-semitas, que puderam assassinar legalmente suspeitos de judaísmo, durante quase três séculos (1536-1821).

Em 1996, cinco séculos depois, o parlamento português revogaria formalmente o Édito de Expulsão. Assim se fez justiça a uma parte do povo português, impedido de ser judeu durante três séculos. Esta realidade social truncada deixaria profundas marcas na nossa identidade (ou na falta dela), inscrevendo no nosso ADN étnico e cultural os traços do marranismo impossível, entre o ser cristão e o ser judeu, que se manifesta ainda na incessante busca de uma identidade, seja ela qual for. Temos sido um povo ora eufórico por coisa pouca, ora profundamente deprimido por tudo e por nada, recorrentemente descrente na própria viabilidade nacional, apesar dos mais de oito séculos e meio de história.

(artigo originalmente publicado na revista “História”, Lisboa, Nº 86, Maio de 2006, pp. 35-41)

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