CAPÍTULO XX.
De como el Rei mandou tomar os filhos aos Judeus, que se iam fora do Reino, & por que causa não fez o mesmo aos mouros.
(2ª parte)
“Enquanto se estas execuções faziam, não deixava el Rei de cuidar no que convinha à saúde das almas desta gente, pelo que movido de piedade dissimulava com eles, sem lhes mandar dar embarcação, & de três portos de seu Reino, que lhes para isto tinha assinados, lhes vedou os dous, & mandou que todos se viessem embarcar a Lisboa, dando-lhes os Estaus para se neles agasalharem, onde se ajuntaram mais de vinte mil almas & com estas delongas se lhes passou o tempo que lhes el Rei limitou para sua saída, pelo que ficavam todos cativos, os quais vendo-se em estado tão mísero, cometeram muitos deles por partido a el Rei que lhes tornassem seus filhos, & lhes prometessem que em vinte anos se não tirasse devassa, & que se fariam Cristãos, o que lhes el Rei concedeu, com outros muitos privilégios que lhes deu, & aos que não quiseram ser Cristãos, mandou logo dar embarcação, quitando-lhes o cativeiro em que incorreram, & se passaram todos a terras de mouros. Ora é que se poderá reputar a descuido não dizermos que causa houve para el Rei mandar tomar os filhos dos Judeus, & não os dos mouros, pois assim uns, como os outros se saíam do Reino por não quererem receber a água do Baptismo, & crer o que crê a Igreja Católica Cristã. A causa foi porque se tomarem os filhos aos Judeus, se não podia recrescer nenhum dano aos Cristãos, que andam espalhados pelo mundo, no qual os Judeus por seus pecados não têm reinos, nem senhorios, cidades, nem vilas, mas antes em toda a parte onde vivem são peregrinos, & tributários, sem terem poder, nem autoridade para executar suas vontades contra as injúrias, & males que lhes fazem. Mas aos mouros por nossos pecados, & castigo permite Deus terem ocupada a mor parte de Ásia, & África, & boa de Europa, onde têm Impérios, reinos, & grandes senhorios, nos quais vivem muitos Cristãos debaixo de seus tributos, além dos muitos que têm cativos, & a todos estes fora mui prejudicial tomarem-se os filhos dos mouros, porque aos que se este agravo fizera, é claro que se não houveram de esquecer de pedir vingança dos Cristãos, que habitavam nas terras dos outros mouros, depois que se lá acharam, & sobretudo dos Portugueses, de quem particularmente nesta parte se podiam queixar. E esta foi a causa por que os deixaram sair do Reino com seus filhos, & aos Judeus não, aos quais todos Deus por sua misericórdia permita conhecerem o caminho da verdade, para se nela salvarem.”
(Crónica do Felicíssimo Rei D. Emanuel, da gloriosa memória, Damião de Góis, Lisboa: Oficina De Miguel Manescal da Costa, 1749, pp.19-20)
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