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O processo

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O número de processos

 

Não há um valor inquestionável para o número de processos inquisitoriais instaurados pelos quatro tribunais (Évora, Lisboa, Coimbra e Goa), mas podemos, sem grande margem de erro, afirmar que terão sido mais de quarenta mil. Nos últimos anos, tem-se afirmado uma “lenda branca” em oposição à “lenda negra”. De facto, a “lenda negra” sustenta que foram dezenas de milhares os que morreram queimados, o que não é verdade. Foram cerca de 2000, o que constitui 5% ou 6% dos processados. A “lenda branca”, por sua vez, contrapondo ao mito do número exagerado dos executados nas fogueiras, procura branquear a ação da Inquisição, dizendo que correspondia à “mentalidade da época” – como se não houvesse quem se tivesse oposto à expulsão e batismo forçado dos judeus e à existência da Inquisição –, desvalorizando os injustiçados, os encarcerados, os perseguidos, os discriminados e impedidos de exercer cargos públicos, assim como seus parentes, filhos e netos, os desterrados, só porque tinham uma religião diferente da católica. Em suma, não só se branqueia assim o crime contra as vítimas diretas, como o de Portugal ter sofrido os efeitos nefastos da Inquisição na economia, nas finanças, no desenvolvimento, na sociedade, na cultura, na ciência, na literatura, na religião.

 

As prisões

 

O processo inquisitorial começava com as denúncias, mediante as quais os inquisidores emitiam mandados de prisão. As denúncias, exceptuando aquelas que eram recolhidas nas visitações da Inquisição (ver “O que foi”), surgiam esmagadoramente da parte de outros presos, que, para tentarem salvar-se, declaravam ter praticado as alegadas heresias com outras pessoas, que eram então presas. As prisões, quando ocorriam em localidades distantes das cidades onde estavam instaladas as sedes inquisitoriais, eram feitas, num primeiro momento, nas cadeias locais, e seguiam depois para essas sedes. Para atuar nesse sentido, havia agentes inquisitoriais espalhados pelo reino: os comissários, que agiam em nome do Santo Ofício, e os familiares, que muitas vezes viviam junto aos cristãos-novos e os vigiavam e espiavam, denunciando qualquer palavra ou ato suspeito e levando-os presos mediante mandado dos inquisidores.

 

As acusações

 

As acusações mais frequentes eram as de judaísmo. Todos os estudos têm demonstrado que mais de 80% dos processos instaurados se referiam a essa “heresia”. Mas também houve muitos processos sobre várias outras acusações, sobretudo de islamismo, protestantismo (luteranismo e calvinismo, principalmente), sodomia (onde se incluía a homossexualidade), bigamia e poligamia, bruxaria e feitiçaria, solicitação (o assédio ou violação sexual cometido por clérigos seculares ou regulares), ideias liberais e ateias, maçonismo e heresias várias relacionadas com abusos e difamação da Igreja Católica e da própria Inquisição.

 

O interrogatório

 

O interrogatório obedecia essencialmente a três sessões. No primeiro interrogatório, depois de perguntarem se tinha alguma “culpa” que confessar e de responder que não, faziam-lhe a sessão de genealogia, em que o questionavam o preso sobre o seu nome, a idade, a naturalidade e a morada, os nomes dos parentes (pais, avós, tios, irmãos, primos, filhos, sobrinhos, mulher, se casado), se era batizado e crismado e onde, em que terras tinha andado, se sabia ler e escrever e se tinha estudos, se tinha anteriormente sido preso ou alguns de seus parentes, e faziam-no ajoelhar, benzer e dizer as principais orações católicas e os Mandamentos . A segunda, se o preso continuava a não confessar nenhuma “culpa”, era a sessão in genere, ou seja, inundando-o de perguntas sobre práticas relativas à “heresia” de tinha sido denunciado. Por exemplo, se estava acusado de judaísmo, perguntavam-lhe se não trabalhava ao sábado, se jejuava no Dia Grande (ver “Glossário”), se arrumava a casa à sexta-feira, etc. A terceira sessão, continuando o preso a não confessar, designava-se in specie, que versava sobre a matéria específica das denúncias, ocultando os nomes dos denunciantes, a matéria concreta das denúncias, os locais e as datas em que teriam ocorrido. Sem estar na posse desta informação, o preso tentava provar que determinadas pessoas eram suas inimigas, para que não anular as suas eventuais denúncias. Quando o réu confessava que tinha crença na “Lei de Moisés”, isto é, era judeu, faziam-lhe a sessão de crença. Havia uma outra sessão, muito grata à Inquisição, que era a do inventário. Muitas vezes ocorria mesmo antes da sessão de genealogia. Convinha saber rapidamente quais eram os bens móveis e imóveis dos presos, para quando lhos confiscassem não tivesse dado tempo a que os parentes os fizessem desaparecer, sobretudo moeda e peças de ouro.

 

O procurador dos réus

 

Não tendo o preso confessado (réu negativo), ou sendo a confissão diminuta, isto é, não cobrindo todas as denúncias que a Mesa da Inquisição (coletivo dos inquisidores que julgava os réus) recebera, era-lhe lido o libelo acusador pelo promotor da justiça do Santo Ofício e perguntavam ao preso se queria defender-se e apresentar contraditas (testemunhas de defesa, obrigatoriamente cristãos-velhos). Para tal, teria de escolher um promotor (advogado de defesa) entre os nomes que o inquisidor lhe apresentava e que era da confiança do Santo Ofício e que tinha de jurar que, se entendesse que o réu era culpado, devia ir denunciá-lo à Mesa. O procurador do réu também não tinha acesso aos nomes dos denunciantes e ao conteúdo das denúncias, que era descrita de forma muito vaga, e, quando reunia com o réu, teria de estar presente um oficial da Inquisição, habitualmente um notário. Se a Mesa aceitava as contraditas, seguia-se a audição das testemunhas de defesa. Findo este processo, o promotor da justiça vinha com novo libelo acusatório, que terminava com uma proposta de sentença, quase sempre de relaxação à justiça secular, quer dizer, condenação à morte pela fogueira.

 

A tortura

 

Muitas vezes, os presos negativos ou diminutos eram submetidos a tormento. Antes da execução do tormento, os réus eram avisados de que, se perdessem algum sentido, partissem algum membro ou morressem, a culpa era deles, pois podiam tê-lo evitado se tivessem confessado as suas “culpas”. Mantendo que não tinham nada mais que confessar, eram despidos, para, alegadamente, não se furtarem à dor e eram atados ao instrumento de tortura. Os meios mais frequentes eram o potro, uma espécie de cama de tábuas, onde o réu era deitado e atado com cordas nos braços e nas pernas em seis ou oito partes, apertando-os com torniquetes, o que podia levar ao esmagamento de membro. O outro era a polé, que consistia em levantar até ao teto a vítima de braços atados atrás das costas com cordas, com pesos nos pés, e largada abruptamente sem a deixar cair, provocando assim graves lesões. Havia dois graus de tormento: se fosse corrido, faseavam a descida, aos solavancos, se fosse esperto, era deixado cair repentinamente de uma só vez, mas sem nunca tocar no solo, o que provocava dores horrorosas e o quebrar de membros. Equivalentes níveis de violência se aplicavam na tortura do potro. Se o réu resolvia confessar, mesmo que fosse só para se livrar do sofrimento (o que acontecia muitas vezes), interrompia-se a tortura e ouvia-se a sua confissão. Um ou dois dias depois da confissão sob tormento, era chamado à Mesa e instigavam-no a confessar sem estar submetido à violência. Se ratificasse, o processo prosseguia, se revogasse, seria de novo torturado. Muitos réus acabavam por revogar, tornar à tortura, confessar e voltar a revogar.

 

As sentenças

 

O processo terminava com o acórdão, discutido e votado pelos inquisidores e deputados (ver “O que foi”). Quando havia dúvidas, designadamente nos casos de sentenciados à pena capital, a última palavra cabia ao Conselho Geral (órgão máximo da Inquisição). Não de tratava de um julgamento como o civil, pois o advogado de acusação, o advogado de defesa, os inquisidores e todos os oficiais que intervinham no processo pertenciam ou eram da confiança da Inquisição. Nem sequer os réus tinham direito a conhecer os seus acusadores, nem a matéria das acusações. Na verdade, era um conjunto de inquisidores e deputados da Inquisição que julgava e determinava as sentenças.  As sentenças iam das meras penitências espirituais (que acompanhavam também as penas mais duras) ao relaxar à justiça secular, ou seja, os condenados à morte, entregues à justiça régia, para que fossem queimados na fogueira. Os sentenciados à justiça secular podiam sê-lo em carne, isto é, em pessoa; em ossos, quando tinham falecido no cárcere ou antes de serem presos; e em estátua, o que se aplicava aos “ausentes”, que eram os que tinham fugido antes de serem presos ou não viviam em Portugal. Os relaxados em carne eram garrotados primeiro, se aceitavam morrer na fé católica, e depois queimados; ou queimados vivos, se persistiam em morrer na sua fé, o que aconteceu a vários acusados de judaísmo. Entre estas duas sentenças extremas havia outras, geralmente de cárcere e hábito penitencial, com vários níveis (a arbítrio dos inquisidores, perpétuo e perpétuo sem remissão). O hábito penitencial era o sambenito, uma espécie de saco ou túnica sem braços. Os reconciliados com o catolicismo levavam uma aspa de Santo André (em forma de X) no sambenito e os relaxados o seu rosto pintado no sambenito, envolto em chamas e com diabinhos à volta. Também podiam ser condenados a degredo para outras localidades ou para os territórios africanos e brasileiro, sobretudo. As mulheres tinham penas de degredo mais prolongadas que os homens. O cárcere perpétuo nunca o era, mas correspondia a determinado número de anos, conforme o grau: cárcere e hábito penitencial perpétuo: 3 anos; cárcere e hábito penitencial perpétuo sem remissão: 5 anos. (Regimento da Inquisição, 1640, Livro III, Título III, § III, IV, VI e VIII).

Todas as sentenças dos relaxados à justiça secular terminavam com a seguinte fórmula hipócrita: “(…) como herege apóstata de nossa Santa fé católica impenitente, feita falsa e simulada confitente e revogante, a condenam e relaxam à justiça secular, a quem pedem com muita instância e eficácia se aja com ela benigna e piedosamente e não proceda à pena de morte, nem efusão de sangue.” (processo de Maria Gomes, Inquisição de Lisboa, nº 9178). Ora, a justiça era obrigada a executar os sentenciados à morte, caso contrário, seriam eles próprios acusados pela Inquisição.

 

O auto-de-fé

 

Logo pela manhã, os réus sentenciados teriam de desfilar em procissão pelas ruas mais frequentadas até ao local do auto-de-fé, onde ouviriam as suas sentenças. Realizava-se habitualmente ao domingo e, na sexta-feira anterior, atavam as mãos aos condenados à morte. Tudo era preparado meticulosamente, como se de uma festa se tratasse (que o era efetivamente para a Inquisição) e paravam toda a atividade social para que a população pudesse assistir e invetivar os condenados quando desfilavam. Conforme a sentença, vestiam sambenito com a aspa de Santo André e carocha (chapéu pontiagudo) ou com o seu rosto envolto em chamas. No local, preparavam os lugares para os notáveis, a começar pelo rei e a família real, o inquisidor-geral, representantes do clero e da nobreza e da própria Inquisição. Esses lugares eram acerrimamente disputados. As sentenças eram todas lidas, o que implicava que a cerimónia durasse longas horas e até mais de um dia, quando os condenados eram às centenas. Os reconciliados (condenados a cárcere e hábito penitencial) regressavam à sede do respetivo tribunal da Inquisição para cumprirem o resto da pena ou lhe indicarem o local onde a iriam cumprir. Os condenados à morte pela fogueira, eram entregues à justiça civil e levados ao local onde os executavam. O primeiro auto-de-fé realizou-se em Lisboa a 20 de setembro de 1540.

 

O sermão

 

Além das sentenças, os condenados eram forçados a ouvir um sermão, proferido por um clérigo especialmente escolhido para o efeito, o que também originava uma forte disputa entre os membros das ordens religiosas. Esses sermões eram muito inflamados, espalhando o ódio aos judeus entre o povo de uma forma muito violenta, que disseminava e estimulava o antijudaísmo popular. Para exemplificar, segue um excerto do sermão proferido no auto-de-fé que se realizou no Terreiro do Paço em 5/9/1638. Através dele podemos imaginar o que sentiriam os condenados, sobretudo os relaxados à justiça secular, ao ouvirem dizer que os judeus cheiravam mal e que nem verdadeiros judeus eram, pois só celebravam cinco ou seis preceitos judaicos quando eram seiscentos e treze. Outra hipocrisia inquisitorial: o judaísmo era proibido, o batismo era obrigatório, os cristãos-novos eram forçados a praticar secretamente as suas cerimónias, não tinham sinagoga, nem rabino para os esclarecerem, e depois eram condenados como judeus, mas afinal nem verdadeiros judeus eram!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sermão que pregou o Padre Mestre Fr. Manuel Rebelo da Ordem dos Pregadores, Lisboa, cinco de setembro deste ano de seiscentos e trinta e oito

“Falarei diante deste auditório tão ilustre, tão grave, tão autorizado e cheio de tantos Mestres e Doutores e contra este povo Hebreu. Invocarei e chamarei o céu e a terra, a cidade de Lisboa, a cidade de Coimbra, a cidade de Évora, os autos da Fé nelas celebrados, para que sejam testemunhas de sua contenção, de sua rebelião e de sua contumácia e como é certa a minha profecia. (…) Neste tempo do Messias, neste tempo da lei Evangélica, virão sobre vós males e castigos, e agora atualmente os estais experimentando. E isto pelos pecados, injúrias e afrontas com que vossos antepassados injuriaram, e afrontaram, e tiraram a vida ao próprio Messias Cristo Jesu, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, e pelos vossos erros, heresias e apostasias, com que atualmente estais ofendendo ao mesmo Senhor, e com estas próprias culpas eles e vós estais provocando e irritando ao mesmo Senhor aos castigos que padeceis. (…) comparando o povo Hebreu, que estava em Jerusalém, a uma panela: pois dir-te-ei o que determino fazer e o que há de suceder. (…) Eu hei de fazer uma grande fogueira. (…) Ajunta a esta fogueira muita lenha, muitos ossos: eu a hei de acender. (…) Também se hão de consumir corpos. Põe esta panela sobre as brasas vazia, para que se aquente e se derreta até o próprio metal de que é feita. Neste vaso estará a maldade e a malícia do povo. Para que se tire toda a ferrugem desta panela e para que se gaste a escuma dela e se tire toda a sua rebelião. Fez-se diligência, diz Deus, cansou-se, trabalhou-se para se tirar esta ferrugem, para se tirar esta rebelião, para se escumar esta panela. (…) Ah, que grande desgraça! Têm-se feito todas as diligências, cansou-se, trabalhou-se, fizeram-se grandes fogueiras, relaxaram-se pessoas à justiça secular, abrasaram-se corpos, fizeram-se em pó e em cinza, queimaram-se ossos e castigaram-se culpas. Nem o fogo gastou esta ferrugem, nem se acaba de escumar esta panela, nem de se tirar esta rebelião, antes parece que com este fogo e com estes castigos cresce mais. Senhor, não saberemos a causa de tão grande mal? Senhor, revelai-nos este mistério escondido. Dá Deus N. S. no mesmo capítulo a causa. Sabeis qual é a razão, diz Deus, porque o sangue deste povo está no meio desta panela, este é o que é causa desta ferrugem, desta escuma, desta rebelião. Este sangue faz ferver a panela e por isso está sempre escumando. (…) A razão está clara, porque basta qualquer goteira de sangue, por pouco que seja para causar essa ferrugem (…) Que sangue é este? E que pedra é esta? A pedra é Cristo Senhor nosso. Pedra limpíssima, eminentíssima e inocentíssima. E o sangue é a crueldade do povo Judaico, executada nesta pedra. E assim o sangue dos Judeus, a crueldade dos Judeus, caiu sobre a pedra; mas o sangue da pedra caiu sobre eles, assim como o pediram a essa mesma pedra para seu castigo. (…) Estes infiéis com a infidelidade Judaica são rebeldes à luz: são rebeldes a Deus, a sua lei, a sua fé, nem há remédio para se reduzirem, nem remédio para se amolgar sua rebelião. (…) São rebeldes em prevaricarem a lei, em serem diminutos na confissão da fé, variantes e simulados para se reduzirem (…)

Vós nos inquietais, vós nos perturbais, vós nos desonrais, vós nos afrontais, vós nos cansais, e não cansais de nos cansar, vós nos fazeis odiosos ao mundo todo, e fazeis com que deste Reino, tão católico e tão alevantado na fé, saia um tão mau cheiro, como é estar sempre cheirando a Judeu e a Judaísmo, e que saindo um natural do Reino não fale com estrangeiro, que não vá logo com a mão ao nariz para examinar se cheira. Mas vai a cousa mais adiante, meus irmãos penitentes, que saíram pessoas do Reino do vosso sangue e vossos naturais, para acreditar e abonar o vosso Judaísmo, pessoas batizadas nas nossas pias, criados com a doutrina Católica, semelhantes no exterior aos Cristãos, se ausentaram e fugiram do Reino e se fizeram públicos professores da lei de Moisés, não Judeus às escondidas, senão às claras. No Reino encobertos por necessidade, e fora do Reino Judeus declarados por vontade.

Mas direis: Não castiga o Tribunal do S. Ofício outras culpas, que fazem cheirar mal o Reino e o infamam. Não se vai entranhando no Reino o pecado de Sodoma e Gomorra? Não se vai ateando este fogo? Não anda subido nos subidos? Não castiga o S. Ofício por feitiçaria? Não castiga os que duas vezes se casam? Não castiga outras muitas culpas? Respondo, tudo é mau, mas a vossa infidelidade Judaica, os vossos erros, as vossas incredulidades, as vossas heresias, as vossas apostasias são piores. (…) Direis, e a idolatria não é maior abominação que o Judaísmo? Digo que não, porque em razão de contumácia e renitência, maior é o vosso pecado que a própria idolatria. O idólatra Gentio estará com as costas dadas à Igreja Católica, mas não entrou ainda nela, pois não tomou o sacramento do Batismo. O pecador Católico grandes abominações e pecados cometerá contra Deus nosso Senhor, mas não está fora do templo, não está fora da Igreja católica; pode remediar pedindo perdão a Deus nosso Senhor dessas culpas e abominações. Mas a vossa abominação é infidelidade Judaica, com que atualmente estais rebeldes, contumazes e com as costas dadas à Igreja católica, à qual pertenceis pelo sacramento do Batismo. E assim a vossa infidelidade é Judaísmo, porque seguis a lei de Moisés, é heresia, porque com obstinação e contumácia credes em vossos erros: é apostasia, porque virastes e destes as costas à lei de Cristo, que estais obrigados a crer e a seguir. (…) Dizei-me quem vos fez Judeu, quem vos ensinou? Direis, meu pai, minha mãe, meu parente, meu amigo, certa pessoa. (…) Dizei-me mais, que vos ensinaram? Direis quatro, ou cinco, ou seis cerimónias. Se eles vos ensinaram o contrário, vós o houvéreis de fazer. Errados ides. Sabeis quantos são os preceitos da lei de Moisés? Seiscentos e treze, contando cerimónias, judiciais e morais, e se vós não guardais os morais, como guardareis os outros. Sabeis quais são os morais? Os dez preceitos do Decálogo, que todos estamos obrigados a guardar. Pois se vós guardáreis o oitavo preceito, que é não alevantarás falso testemunho, não o alevantáreis a vós próprios com palavras e com obras: com palavras, dizendo que sois Cristãos, e com obras obrando no exterior como Cristãos, sendo no interior Judeus, Cristãos de dia, Judeus à noite, Cristãos às claras, Judeus às escuras. O Cristão na sua lei verdadeira diz que é Cristão, o pagão na sua seita diz que é pagão, e o Mouro, que é Mouro, só vós não quereis dizer que sois Judeus, senão ao revés do que sois, e a vossa cegueira deu nesta habilidade, para viverdes à vontade e levardes boa vida. E certo que quis saber de raiz em que se fundava esta gente para dizer que não era necessário confessar a lei, senão tê-la só no coração, e consultando escrituras e livros, nunca lhes pude achar razão, porque a não tem: contudo ocorre-me uma resposta. Esta gente faz uma cerimónia, que cuida é de grande importância e de grande consideração, em a qual cuida que está o nervo de sua salvação, e é varrer casa às avessas, e como fazem tudo às avessas, também lê nos livros e as escrituras às avessas: e como elas digam que se há de confessar a lei com a boca, eles cuidam que basta só tê-la no coração. (…) Ah impenitentes, que aí estais para ser relaxados à justiça secular, que não soubestes, nem quisestes bater à porta deste coração, não soubestes aproveitar dele, que patente, e descoberto, e aparelhado estava para vos receber, se pedíreis misericórdia, mas não o fizestes por vossa rebelião e contumácia. Viu o vosso Profeta Jeremias uma vara. E depois diz que viu uma panela acesa. Ah que não quisestes dobrar esta vara com pedirdes misericórdia, pois vereis fogueiras, e se as não virdes acesas, vê-las-eis preparadas para vos abrasarem e fazerem em pó e em cinza. (…) Confesso que este dia para vós é dia de grande trabalho, de grande tribulação, de grande opressão, de grande angústia, de grande vergonha; mas nele resplandecerá mais a formosura da divina misericórdia, e muito mais resplandecerá e alevantará de ponto, quando em todos estes trabalhos, opressões, e tribulações, e angústias, tiverdes paciência, e sofrimento, porque então tereis a verdadeira disposição para a divina misericórdia resplandecer mais, e quanto mais alevantardes esta paciência e sofrimento, tanto mais alevantareis a formosura da divina misericórdia. E assim podeis dizer aquelas palavras de Santo Agostinho tão sabidas. Senhor, aqui neste dia, cortai, aqui a tribulação, a opressão, aqui a angústia, aqui a vergonha. Aqui, Senhor, queimai aqui, Senhor, venha o fogo, e faça o meu corpo em pó e em cinza, para que, Senhor, sejam minhas culpas perdoadas para sempre. E se a sentença delas temporalmente me condena, a vossa divina misericórdia eternamente me perdoe. (…)”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REGIMENTO DO SANTO OFÍCIO DA INQUISIÇÃO

DOS REINOS DE PORTUGAL (1640)

TÍTULO VI

DAS ADMOESTAÇÕES, E DAS SESSÕES QUE SE HÃO DE FAZER AOS PRESOS NEGATIVOS ANTES DO LIBELO DA JUSTIÇA

Admoestações que se hão de fazer aos presos negativos antes do libelo

I. Antes de vir o Promotor com libelo por parte da Justiça, contra os presos que estiverem negativos, lhe farão os Inquisidores três admoestações, com distinção de tempo em cada uma delas; e a primeira se fará na sessão de genealogia; a segunda na sessão in genere, e a última na sessão in specie.

Sessão de genealogia

II. A primeira sessão, que há de ser de genealogia, se fará ao preso, dentro em dez dias, depois de haver entrado nos cárceres. Nela será perguntado por seu nome, por sua idade, qualidade de sangue, que ofício tinha, de que vivia, donde é natural, e morador, quem foram seus pais e avós, de ambas as partes, que tios teve, assim paternos, como maternos, e que irmãos, o estado que uns e outros tiveram, se são casados, e com quem, que filhos, ou netos tem vivos, ou defuntos, e de que idade são, se é cristão baptizado, e crismado, onde, e por quem o foi, se ouvia Missa, e se confessava, e comungava, e fazia as mais obras de cristão.

Mandarão ao preso que se ponha de joelhos, e que se benza e diga a Doutrina Cristã, a saber, o Padre Nosso, Ave Maria, Credo, salve rainha, Mandamentos da Lei de Deus, e da Santa Madre Igreja; o que se fará, ainda que o preso notoriamente seja pessoa de letras. Será mais perguntado se sabe ler, e escrever, se estudou alguma ciência e onde; se tem algumas Ordens, se saiu fora do reino, e por que partes andou, e nele em que terras esteve, com que pessoas tratava, e se comunicava, e se foi outra vez preso, ou penitenciado pelo Santo Ofício, ou teve alguns parentes que o fossem.

Todas estas declarações se tomarão com muita miudeza, e se escreverá cada uma delas em regra separada, para que mais facilmente se possa achar, pelas genealogias, o que por elas se quiser saber. Será perguntado se sabe, ou suspeita, a causa por que foi preso, e trazido aos cárceres do Santo Ofício.

Sessão in genere

IV. Na segunda sessão, que se fará dentro de um mês depois da prisão, será o preso perguntado em geral por suas culpas, e pela crença e cerimónias da lei, ou seita de que estiver delato, para que, achando-se culpado em alguma delas, o confesse, e trate do que convém à salvação de sua alma. E nesta sessão se multiplicarão as perguntas, segundo a qualidade das culpas e cerimónias da lei, ou seita de que está indiciado (…)

Sessão in genere de judaísmo

V. E sendo as culpas de judaísmo, será o réu perguntado pelas que cometeu depois do último perdão geral. E se o réu estiver indiciado de alguma.

Sessão in specie

VI. Feitas aos presos negativos as sobreditas sessões de genealogia, e in genere, se lhe fará a terceira in specie, dentro do mais breve tempo que for possível; salvo se parecer aos Inquisidores, por alguma causa justa, que convém dilatar-se por mais tempo. Nela serão perguntados em particular pelos ditos das testemunhas, que contra eles houver, na mesma forma em que depuseram; e havendo nelas alguma circunstância particular, pela qual se possa vir em conhecimento da testemunha, nesta caso se calará a tal circunstância.

Forma dos libelos

VIII. O Promotor formará os libelos em nome da Justiça, e o primeiro artigo deles será geral, conforme a qualidade das culpas, de que o réu estiver delato, e dirá nele, que, sendo o réu cristão baptizado, e como tal obrigado a ter, e crer tudo o que tem, crê, e ensina a Santa Madre Igreja de Roma, ele o fez pelo contrário, e se passou a tal crença, ou seita; e sendo as culpas de judaísmo, dirá que o réu as cometeu depois do perdão geral.

Logo irá formando artigos, pelas perguntas que foram feitas ao réu, na sessão in specie, dos ditos das testemunhas, e depois formará artigos de fama, se houver testemunhas que dele deponham; e em um artigo particular arguirá o réu de não ter confessado suas culpas, sendo por vezes para isso admoestado; e concluirá o libelo, pedindo recebimento, e que o réu seja castigado, como herege negativo, e pertinaz, com todo o rigor de Direito, e entregue à Justiça Secular.

 

 

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