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Literatura antissemita

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A LITERATURA ANTISSEMITA EM PORTUGAL (séculos XV-XX)

 

A literatura antissemita em Portugal espelha a relação dos judeus com o poder ao longo dos últimos cinco séculos. Pode sistematizar-se nos seguintes períodos: 1- da fundação da nacionalidade ao estabelecimento da Inquisição (a literatura de controvérsia religiosa); 2- do estabelecimento da Inquisição à legislação filossemita de Pombal (a literatura de apologética antijudaica); 3- de Pombal à 1ª República (o inexpressivo antissemitismo); 4- da 1ª República ao fim da 2ª Guerra Mundial (o antissemitismo lusitano); 5- a segunda metade do século XX (recorrências antissemitas).

 

DA FUNDAÇÃO DA NACIONALIDADE À INQUISIÇÃO

Até ao Édito de Expulsão de D. Manuel I (1496) não se pode dizer que tenha existido propriamente uma produção literária antissemita, pois só se conhecem quatro obras literárias antijudaicas, a saber: Tratado teológico em que se prova a verdade da religião de Jesus Cristo, a falsidade da lei dos Judeus e a vinda do Messias, escrito por um pregador que ia às sinagogas para converter judeus ao cristianismo; Speculum disputationes contra hebraeos, manuscritos de 1333 e 1345, da autoria de Frei João de Alcobaça; Livro da Corte Imperial, de Raimundo Túlio, em que se procurava demonstrar a superioridade cristã sobre o judaísmo e o islamismo; Ajuda da Fé (1486), de Mestre António, judeu convertido ao cristianismo, médico de D. João II. Trata-se da cópia do livro de outro judeu convertido, Jerónimo de Santa Fé, mas moderado em comparação com a violenta literatura espanhola antijudaica da época.

As primeiras décadas do século XVI foram tempos de constantes solicitações do clero ao Papa no sentido da catequização dos “pertinazes hebreus”. No entanto, a presença do judeu na literatura portuguesa da época era objeto de sátira (ainda) de tradição medieval: a prática da usura e o não reconhecimento de Cristo como o verdadeiro Messias eram os estigmas mais relevantes da representação da imagem do judeu. Dois exemplos: o Cancioneiro Geral (1516) e o teatro de Gil Vicente. Só em 1532 aparece a primeira obra literária verdadeiramente antijudaica: Ropica Pneuma (“Mercadoria Espiritual”), de João de Barros. Este livro começa por dar a sua explicação da razão da proteção dada pelas nações aos judeus em diáspora, onde são acolhidos “não como povo desprezado, mas como planta digna de ser plantada em toda a terra, foram recolhidos em populosas cidades e os príncipes delas os plantaram na parte mais segura de perigos, por serem árvores que davam saborosos frutos de rendimentos”. Segue-se uma apreciação do papel financeiro dos judeus e do estigma a ele associado: “E, posto que de todos sejam zombados, possuem a grossura da terra onde vivem mais folgadamente que os naturais: porque não lavram, nem plantam, nem edificam, nem pelejam, nem aceitam ofício sem engano. E com esta ociosidade corporal neles se acham mando, honra, favor e dinheiro, sem perigo das vidas, sem quebra de suas honras, sem trabalho de membros, somente com um andar miúdo e apressado, que ganha os frutos de todolos trabalhos alheios. Chamam-se herdeiros do povo e a eles ninguém lhe herda o seu sem retorno de oitenta por cento. Nunca fizeram serviço que não corrompessem alma, honra ou fazenda de quem o aceitou.”. Não podia ficar esquecida a tão recorrente acusação de “povo deicida”, facto que seria, no entender de João de Barros, causador da maldição do êxito material a que os judeus estariam eternamente condenados: “Estes são os Hebreus que tanto louvaste: padecem tais cativeiros, desterros e opressões, como nunca passaram. (…) crucificado Cristo, destruída Jerusalém, foram e são espalhados por todo o mundo: cativos, sujeitos e desprezados de todalas nações dele: e a bem-aventurança que lhe a Vontade achava em terem mando, honra, favor, dinheiro e ofícios nas terras, onde vivem descansadamente que os naturais, essa foi a maior maldição que lhe Deus deu. Porque vendo a fraqueza com que os homens acodem a fé e lei de Cristo, a estes que o mataram deu naturalmente uma agudeza e soltura industriosa para viverem do trabalho do povo cristão: porque esta mágoa de os verem prevalecer fosse um estímulo de os aborrecerem, pois o não faziam por ter tal contumácia. Assim que podes daqui tomar uma conclusão: Os hebreus por seu pecado são semelhantes ao demónio, para os povos são estímulo e açoite de Deus, e para si são pena de tormento”. Apesar da inequívoca postura antijudaica de João de Barros, Ropica Pneuma seria proibido pelo Índice inquisitorial de 1581!...

 

DO ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO A POMBAL

Finalmente, após longa luta de influências e descarada corrupção do Papa, D. João III consegue o estabelecimento da Inquisição em Portugal no ano de 1536. Começava o terror para todos quantos fossem suspeitos de heresia, à cabeça dos quais estava sempre o cristão-novo, acusado de judaizar, quer se tratasse ou não de um criptojudeu. Após os primeiros autos-de-fé na década de 1540, começam a surgir com mais frequência obras literárias antijudaicas. Eis duas das mais representativas deste período: o Espelho de Cristãos Novos e Convertidos, de Francisco Machado (1541), dedicada ao Cardeal D. Henrique; e o Diálogo Evangélico sobre os Artigos da Fé contra o Talmud dos Judeus (1542), de João de Barros. No seu manuscrito, Francisco Machado esclarece,: “O fim principal desta obra é, ó claríssimo Senhor, persuadir e demonstrar aos Judeus polos seus doutores e Rabis, e polos talmudistas, e polos profetas, e pola sua lei que o Messias já é vindo e são passados 1541 anos e que todas as propriedades que eram escritas polos profetas e polos seus doutores do Messias, todas foram comunicadas e mais apropriadas e atribuídas a Cristo nosso Redentor e nosso Salvador pelo qual bem se demonstrará andarem eles muito enganados e cegos, vestidos com o véu de Moisés, o qual não se há-de tirar senão convertendo-se eles à fé de Cristo”. Apesar do objectivo de conversão dos judeus, esta obra só foi publicada em latim e no ano de 1567. No Diálogo Evangélico, manuscrito concluído já após os três primeiros autos-de-fé ocorridos em Lisboa, João de Barros procura combater o messianismo judaico e impedir a saída dos judeus do Reino, como se pode ler no Preâmbulo: ”E vendo El-Rei Dom João o terceiro de Portugal quão contumazes e duros estavam em sua perversa doutrina, como capitão e defensor da fé, mandou aos ministros de sua justiça que os fizessem em cinzas, por não ficar memória de sua sepultura”. Este manuscrito manteve-se inédito até 1950 (quatro séculos!...). Pode acrescentar-se um terceiro manuscrito não publicado: Inquisição e segredos da Fé, contra a obstinada perfídia dos judeus, e contra Gentios e Hereges, da autoria de Diogo de Sá.

Com a afirmação da Inquisição durante a segunda metade do século XVI e a crescente divulgação da imprensa em Portugal, a literatura antijudaica ganha cada vez mais adeptos. Um deles foi Gaspar de Leão Pereira, primeiro Arcebispo de Goa, território onde fundou o tribunal da Inquisição. Da sua bibliografia, deve destacar-se a tradução do Tratado que fez Mestre Jerónimo, médico do Papa Benedito 13, contra os Judeus: e que prova o Messias da lei ser vindo / Carta do primeiro Arcebispo de Goa ao povo de Israel, seguidor ainda da lei de Moisés e do Talmud, por engano e malícia dos seus Rabis (Goa, 1565). Na carta introdutória à obra de Mestre Jerónimo, rabi da judiaria de Roma convertido ao cristianismo, D. Gaspar de Leão explica as razões da tradução dessa obra pela persistência dos judeus em não reconhecerem em Cristo o Messias, pelo que teriam ficado eternamente a sofrer. E aponta o caminho da “salvação” com o exemplo do próprio Mestre Jerónimo. D. Gaspar de Leão dirige-se aos judeus nos seguintes termos: “Nem menos espero que leia este livro logo com intenção de vos salvar mas ficarei satisfeito se ao menos o lerdes como gente ociosa escondido de vossos rabis, confiando no senhor que por via da curiosidade haver de vós misericórdia, abrindo os olhos de vosso entendimento, para que, vendo os enganos em que vos trazem os rabis, acudais a fé católica, como verdadeiros filhos de Abraão.”

À entrada do século XVII, a literatura antijudaica cresce aceleradamente, tanto quanto o ódio clerical ao hebreu. É longa a lista de autores de obras que circularam no Portugal seiscentista, período em que o terror inquisitorial português ultrapassou de tal forma a já decadente Inquisição espanhola, que os cristãos-novos tinham como exigência central a adoção dos métodos inquisitoriais dos nossos vizinhos (estávamos então sob domínio castelhano). Dois dos mais relevantes autores dessa época foram João Baptista d’Este e Fernão Ximenes de Aragão. João Baptista d’Este, hebreu de origem italiana, convertido, publicou Consolação Cristã e luz para o povo hebreu sobre os salmos do real profeta David... (Lisboa, 1616) e Diálogo entre discípulo e mestre catequizante... (Lisboa, 1621), livro dedicado a Filipe III, onde todas as tradições judaicas são expostas e contestadas, designadamente o não reconhecimento da vinda do Messias em Cristo, o pão ázimo, a circuncisão, o Sabat. O autor escreveu esta obra em diálogo, “para que com mais facilidade se aproveitem dela os que deixam o judaísmo e vêm de boa vontade buscar a fé Católica. E para reprimir em parte a malícia dos judeus obstinados, que de muitas maneiras procuraram e procuram sempre torcer o sentido da Escritura”. O segundo exemplo é Fernão Ximenes de Aragão, Arcediago de Santa Cristina, na diocese de Braga. A sua Doutrina Católica para instrução e confirmação dos Fiéis, extinção das seitas supersticiosas e particularmente do judaísmo, Lisboa, 1625, foi dedicada ao Inquisidor Geral e nasceu por o autor se achar dotado de talentos especiais para o efeito, conferidos pelo Criador e entender que chegara o momento de pagar a dívida de tal concessão divina escrevendo este tratado. Neste livro, trata-se o judaísmo como “doutrina diabólica” e considera-se que, em virtude de os judeus não crerem em Cristo, “foram e são castigados e aborrecidos de Deus”. Dirigindo-se ao Inquisidor Geral, Ximenes de Aragão, traça o quadro dos grandes males daqueles tempos, aconselhando o seu próprio remédio: “Esta praga do judaísmo, que por castigo de Deus anda neste Reino e deitou raízes nele, tem necessidade de três remédios juntos (...) O primeiro é o que se lhe dá com a ordem judicial da Santa Inquisição (...) O segundo é (...) o da separação perpétua dos hereges convencidos, ou se faça por desterro para fora do Reino, ou por cárcere perpétuo nele, sem nenhuma comunicação (...) que os convencidos e hereges quasi todos permaneceram hereges e raro foi o que de verdade se reduziu. O terceiro é o de se divulgar doutrina que seja como arte que se possa ver e aprender claramente as verdades Católicas, sem pejo, nem temor de e dano e se desfaçam as cegueiras dos erros contrários: para que com esta lição os fiéis se confirmem mais na fé, os fracos se esforcem e os cegos se desenganem e reduzam a ela”. Entre os vários autores de literatura antijudaica, há mais um que merece uma especial referência: Roque Monteiro Paym com a Perfídia Judaica Christus Vindex, editada em 1671 (em Madrid), ano do célebre “caso de Odivelas”, onde o autor se manifesta do seguinte modo contra os cristãos-novos: “(…) descendentes e infectos da nação Hebreia, porque todos têm o mesmo sangue e, com razão do sangue e da natureza, todos professam os mesmos costumes (…), sediosos, pérfidos, avarentos, hipócritas e iníquos, que tudo sujam, tudo pervertem e a todos perturbam (…), deles se originam as heresias e eles são a causa de todos os males da cristandade”. Nos finais desse século, surgiu uma obra do padre Francisco de Torrejoncillo (Sentinela Contra Judeus), publicada em 1674 e com várias edições em Portugal, cuja tradução de Pedro Lobo Correia, em 1745, é um bom exemplo do delírio antijudaico: “Há muitos sinalados pela mão de Deus, depois que crucificaram a Sua Divina Majestade, uns têm uns rabinhos, que lhe saem do seu corpo do remate do espinhaço; (…) outros não podem cuspir nem lançar humidade alguma fora da sua boca (…) Conhecem-se muito também que são judeus, em narizes, na barriga das pernas, na pouca limpeza e desmazelamento geral, em as costas e em mostrarem ser corcovados (…) Alguns há que lhes fica a baba ou o cuspo pegado em a barba, quando cospem, em pena de haverem cuspido em a do nosso Redentor (…) e derramam sangue de suas partes vergonhosas cada mês, como se foram mulheres”.

Embora o primeiro terço do século XVIII represente uma certa continuidade da literatura apologética antijudaica do século anterior, há uma obra – Sinagoga Desenganada, Lisboa, 1720 – que se tornou uma referência desse tipo de literatura em pleno “Século das Luzes”, que viria a ser drástica e eficazmente interrompida pelo Marquês de Pombal. Trata-se de um livro do padre João Pedro Pinamonti, que percorreu a Itália em pregação antijudaica durante mais de 40 anos, traduzido pelo padre João António Andreoni. Os destinatários da Sinagoga Desenganada são aqueles que “não dão graças a Deus pela luz que lhes têm comunicado no Santo Bautismo e muito mais para acudir aos que dão entrada às dúvidas, que lhes oferece o comum inimigo, ou que por terem nas veias algum sangue da nação Hebreia, são mais facilmente tentados e ainda miseravelmente vencidos, vacilando ou caindo, como se vê frequentemente, nos Autos de Fé e como tem mostrado as experiência nestes últimos anos”. Tornava-se necessário encontrar remédio para uma conversão verdadeira, porque a que fora imposta desde os finais do século XV não dera o resultado pretendido e esperado, nem com a acção impiedosa da Inquisição. O judaísmo ter-se-á mantido durante mais de dois séculos, constituindo ainda uma ameaça, o que levava a Igreja a separar os incautos judaizantes dos maliciosos e obstinados judeus. Esta obra contém os argumentos considerados eficazes para os “homens de nação” abandonarem o judaísmo e “se guardarem dos inimigos mais perniciosos, pelo que têm de contágio e ocultos, que se misturam como zizania entre as searas católicas (…) Porque a larga experiência da inflexível obstinação e afectada cegueira com que os Hebreus não somente forcejam por segurar nos olhos o véu com que resistem à luz da verdade, mas além disso buscam, seguem, abraçam e adoram as mal formadas quimeras de seus aéreos e fúteis enganos, tem feito novo e pouco esperado à Sinagoga o título de Desenganada (…) Mas é tanto o poder da verdade, tão fortes os raios de sua luz que, bem como raios despedidos pela valente mão do Autor deste livro, não duvido que rompam, dissipem e desfaçam todo esse impenetrável muro de obstinação com que se defende e resiste a Sinagoga”. A dado passo, Pinamonti procura demonstrar quão merecidas foram todas as perseguições e tentativas de extermínio a que foram submetidos os judeus, particularmente a oportuna expulsão de Espanha, “donde foram degredados para sempre no ano de 1492 pela piedade de Fernando Rei de Castela”. Mais adiante, elogiando o papel dos autos-de-fé da Santa Inquisição, “aonde se declaram os delitos plenamente provados dos que fingidamente abraçam e professam a Fé Cristã, movidos do interesse, ou de outros respeitos temporais, e depois ocultamente exercitaram os Ritos e cerimónias Judaicas com desprezo da Lei e da Pessoa de Jesus Cristo, a quem tinham reconhecido por verdadeiro Messias. E nestes casos não se castigam por serem judeus de nação, mas por serem Cristãos fingidos”. Pelo castigo, se manifestaria a clemência da Igreja, admitindo a confissão voluntária dos réus, que em vez de se emendarem, reincidiam na prática do judaísmo, acabando por merecer o suplício imposto. Assim pensava Pinamonti “acerca das moléstias dadas aos Hebreus, depois que a Religião Cristã ficou estabelecida pacificamente em todo o mundo, debaixo dos seus próprios Príncipes e Imperadores”. Nem mais!...

 

DE POMBAL À 1ª REPÚBLICA

É o decreto pombalino de 25 de maio de 1773, promulgado por D. José, que põe fim à crescente literatura antijudaica em pleno “Século das Luzes”, que bania a limpeza de sangue e a discriminação dos cristãos-novos. As penas aplicadas a quem persistisse na discriminação ora revogada – nem que fosse em simples palavras – foram duras, mas eficazes. Desde o decreto de 1773 até à extinção da Inquisição (1821), não é conhecida significativa literatura apologética antijudaica, só reaparecendo na fórmula antissemita, de natureza racista, na segunda metade do século XIX.

Os judeus europeus viveram, no último quartel do século XIX, um dos piores períodos da sua história. A Alemanha via nascer a expressão “antissemitismo”, utilizada pela primeira vez em 1873, a Rússia iniciava a primeira vaga de pogromes em 1881-1884 e dava à estampa, em 1903, a primeira edição dos Protocolos dos Sábios do Sião, a mais célebre falsificação antissemita, pondo os judeus e o judaísmo a ferro e fogo; e a França assinalava a transição do século com o mais desmoralizante acontecimento, o “affaire Dreyfus” (1894-1906), condenando um capitão judeu sob acusação de espionagem a favor da Alemanha, despoletando um fantástico movimento antissemita, com repercussões na Europa. Enquanto se viviam estes acontecimentos na Europa, Portugal parecia manter-se inatingível por essa onda avassaladora, apesar dos seus antecedentes históricos, que fizeram lei durante séculos. O moderno antissemitismo, com características racistas, manifestou-se tardiamente no nosso país e foi protagonizado por personalidades integralistas e nacionalistas, tais como António Sardinha e Mário Saa. Enquanto as primeiras comunidades judaicas se começavam a reinstalar em Portugal a partir de 1801, o pronunciamento liberal de 1820 não se oferecia favorável ao aparecimento e difusão daquela odiosa literatura hostil aos hebreus. Contudo, a conservadora reação europeia à Revolução Francesa proporcionou a emergência de publicações antijudaicas, a que os antissemitas associaram os mitos da conspiração judeomaçónica e da pretensão judaica do domínio mundial. Em Portugal, embora esse fenómeno não se manifestasse em termos significativos, não deixou de ter os seus representantes: José Agostinho de Macedo, que traduziu a célebre obra do abade de Barruel, onde atribuía à Maçonaria a responsabilidade pela “fatal” Revolução Francesa e José Luís Coelho Monteiro, que foi precursor em Portugal do mito do “complot” judaico-maçónico, com a obra Maçonismo Desmascarado (1823), onde expunha a tese em voga na Europa anti-liberal: “O Maçonismo é o Judaísmo mascarado debaixo daquele nome. – Todos os Judeus são, por conseguinte, Mações ou liberais de sua natureza”. O autor termina o opúsculo, ameaçando com o castigo eterno para quem não arrepiar caminho, deixa bem claro que, quanto aos dirigentes da Maçonaria, nada haveria a fazer, restando-lhes dois destinos possíveis: “(…) ou hão-de acabar connosco, dando-nos o mesmo tratamento que estes, ao Crucificado; ou nós com eles, descarregando sobre suas criminosas e esturradas cabeças a espada da lei, que, mais furibunda, se é possível, que a própria Maça de Hércules, decepe até a derradeira desta venenosa e sanguisedenta Hidra”. O extermínio do judeu/mação deicida seria, pois, a única solução para a sua nefasta influência em Portugal, que já se pronunciara em 1820 e ameaçava prosseguir no domínio do país.

A partir desta obra, abre-se um período de significativa ausência de literatura antissemita, que, no entanto, não impediu que o século terminasse com alguns laivos antijudaicos, com o judeu sempre disposto a dominar o mundo, através do dinheiro, do ouro, da banca, à medida que se apuravam os seculares preconceitos que perseguiam os adeptos da Lei Mosaica. É o caso de uma “farpa” de Ramalho Ortigão, a propósito da vinda a Portugal do financeiro judeu Isaac Camondo no último quartel do século XIX: “Camondo faz parte desse governo supremo do nosso século, constituído pelo poder do dinheiro e representado por seis ou oito judeus, de que são presentemente tributários todos os reis e todos os países da Europa (…)”. Coelho Monteiro e Ramalho Ortigão terão sido os responsáveis pelas mais significativas obras da literatura antijudaica oitocentista, pouco mais se vislumbrando até à proclamação da República, momento em que surgem as verdadeiras publicações antissemitas contemporâneas portuguesas. Coisa pouca, convenhamos, para a turbulência que grassava por essa Europa dentro, desde a França antidreyfusista até à Rússia czarista.

 

DA 1ª REPÚBLICA AO FIM DA 2ª GUERRA MUNDIAL

A reação monárquica à implantação da República proporcionou a criação do Integralismo Lusitano, de fundamentos monárquicos muito conservadores, anti-liberais, profetas do totalitarismo anunciado, congregando legitimistas miguelistas. É precisamente em personalidades afetas a esta panaceia nacionalista que podemos encontrar os exemplos maiores do ideário antissemita português, que  produziu uma literatura similar à que percorria o velho continente, durante toda a 1ª República e até meados do século. Um dos primeiros textos antissemitas deste período foi publicado na série de opúsculos intitulada Os Meus Cadernos, da autoria de Mariotte, i.e., o padre Amadeu de Vasconcelos, que se refere aos judeus com o epíteto de “raça maldita”. À pergunta se haveria ou não “questão judaica” em Portugal em 1913, Mariotte, perante a evidente falta de uma forte comunidade judaica portuguesa que justificasse um combate imediato, respondia com uma atitude preventiva: “(…) devemos vigiá-los com cautela porque no primeiro conflito entre o interesse nacional português e o interesse cosmopolita do judaísmo, esses fingidos portugueses pôr-se-ão ao lado dos seus irmãos de raça contra nós”. Este estado de alerta em relação aos “fingidos portugueses” tornar-se-ia uma constante antijudaica ao longo das primeiras décadas do século.

Outros políticos integralistas assinariam artigos de natureza antissemita, sobretudo na década seguinte, mas seria o publicista António Sardinha, o incansável mentor integralista da pureza da “raça lusa”, o verdadeiro paladino do antissemitismo português. Deixou obra literária suficiente para fazer escola no insólito elogio contemporâneo ao Santo Ofício, na defesa da “especificidade da raça lusitana”, na condenação à “porca infecção hebraica”. Com efeito, Sardinha deixa bem clara a sua tese racista, assente na inglória defesa da exclusão de qualquer influência étnica. Mais: de qualquer contacto perigosamente infeccioso, como se pode ler numa obra praticamente inédita, que anuncia algumas das linhas de força do que viria a ser a cartilha antissemita do Integralismo Lusitano. Trata-se do livro O Sentido Nacional duma Existência / António Thomaz Pires e o Integralismo Lusitano (1914): “Portugal jamais se defendera de misturas alogénicas – se não nos guardassem as medidas purgatórias do Santo Ofício, a gente de cor, as etnias bastardas, entrariam na nossa composição em dosagem preponderante. Mesmo assim nos subterrâneos do nosso atavismo, recalcados pela repulsa sábia da higiene inquisitorial, dormitavam as influências desagregantes da mestiçagem nigerista, que a aventura ultramarina nos custara, mais a porca infecção hebraica, de que não escapámos incólumes”. Para que não restassem dúvidas acerca do que pensava sobre a introdução da Inquisição em Portugal, Sardinha deixa claro mais adiante: “Assim D. João III, ao instalar a cúria inquisitorial, incarna uma necessidade em que nós vibraríamos se vivêssemos antanho. Não é abordar um problema que eu reservo para estudo dilatado. Com as luzes da antroposociologia contento-me em asseverar que o injuriado monarca se mostrou conforme ao sentir unânime – como rei o reflectiu e exprimiu, praticando um incalculável serviço à unidade moral da Pátria, à boa higiene da alma colectiva num país em que os escravos excediam infinitamente os indígenas e, porta aberta às perniciosas influências do morbo judengo e da corrosão huguenote, se achava exposto a resvalar com rapidez para a última das desagregações, atacado na rijeza estrutural por categorias étnicas e psíquicas tão adversas. A salubridade da Nação, restrita ainda ao unitarismo confessional, impunha-lhe o procedimento que teve como chefe e como pai”. O campeão do nacionalismo lusitano aproveitou este seu livro para preencher o vazio antissemita coevo ao célebre “affaire Dreyfus”, que em Portugal mereceu a quase unânime solidariedade. Na verdade, foi preciso esperar duas décadas sobre o início dos acontecimentos (1894) para se poder ler um retroativo panegírico luso à altura do crescente antissemitismo europeu da viragem do século: “Em França o antissemitismo não é senão a revolta sagrada, a indignação justíssima, dos elementos nativos do país contra a gestão absorvente dos banqueiros israelitas nas engrenagens da governança (…) A tremenda questão Dreyfus descobriu a chaga, revelou o perigo”. No ano seguinte, Sardinha publicava o Valor da Raça, onde expunha as linhas gerais do seu ideário racista. As suas teses viriam a ser confirmadas ainda no decurso desse ano, em conferência proferida na Liga Naval e publicada no ano seguinte, com o título “O Território e a Raça”, incluída na coletânea A Questão Ibérica (1916), onde assume a convicção da origem geográfica da “Raça Lusitana”. Oriundo da mítica Atlântida, o Português sustinha o avanço semita: “Como em frente das legiões rumorosas do Lácio, o Luso sustinha-se indissolúvel, pertinaz, barreirando o alastramento semita” (Glossário dos Tempos, 1942). Por toda a obra de António Sardinha perpassa o halo rácico incontinente, que exulta com a expulsão da “infecta nação” decretada por D. Manuel em 1496, a que Pombal abriu as portas para o assalto ao Estado cristão e que o Liberalismo (“forma espiritual de Semitismo”) acabaria por conduzir à vitória da “raça republicana” em 1910 (Durante a Fogueira / Páginas de Guerra, 1927).

A preocupação com a “raça desfeita”, com a pureza Lusa infetada, é uma das ideias-chave do antissemitismo racial, com o seu incontornável horror às insofismáveis influências étnicas no povo português, que constituía um dos piores exemplos para os paladinos da pureza da raça. Mas, a mais notável obra do moderno antissemitismo português foi A Invasão dos Judeus (1925), de Mário Saa, que procurava demonstrar que os judeus estariam instalados no poder e na sociedade portuguesa, dominando a coisa pública, a economia, a cultura, a religião e a vida mental do nosso país. Para Mário Saa, a República foi edificada pelos judeus, estava a ser governada por judeus, procurava servir secretos interesses judaicos, o que ele faz questão de enunciar no primeiro parágrafo do seu livro: “Uma coisa espantosa está acontecendo em toda a Europa e ameaça abraçar o Mundo inteiro: essa coisa espantosa é a invasão dos Judeus! É a sobrevivência das civilizações antigas da Caldeia avolumada no tempo à força da graça e da desgraça! Eis a invasão que não faz rinchar cavalos, nem rodar artilharias nas montanhas, mas que chega, entretanto, silenciosa, furtiva e gigantesca, a abalar as instituições seculares”. Este livro é, todo ele, construído em cima de duas outras obras de referência do ideário antissemita – Os Fundamentos do Século XIX (1899), de Houston Stewart Chamberlain e História dos Cristãos-Novos Portugueses (1921), de J. Lúcio de Azevedo –, que servem de “fontes” inquestionáveis para Saa, que os cita vezes sem conta para fundamentar a superioridade da “raça ariana” sobre a “raça semita”, a história judaica e os inconfessáveis intuitos dominadores dos judeus. O autor defende a tese muito singular de que a expulsão dos judeus, decretada por D. Manuel I em 1496 (“Quem teria inventado a grosseira balela da expulsão dos judeus?...”), foi o princípio da influência decisiva na vida do país e na própria personalidade portuguesa: “A conversão trouxe o acesso dos judeus à vida pública, sem trazer conveniência ao cristianismo. (…) Logo depois de 1496 os tornadiços assomavam-se em «cardume» em todo o lugar; e contudo, estava-lhes aberta a carreira aos postos públicos, como as portas dos templos. Aquela conversão ao cristianismo fora mais um triunfo de povo invasor”. Esta insólita “vitória judaica” sobre a cristandade, através do terrível batismo forçado manuelino, viria a ser complementada por uma outra não menos aberrante “vantagem”: “A Inquisição fora mais uma vantagem para os judeus, – vantagem de fazer substituir à justiça do povo, a justiça do Estado; – vantagem de canalizar os ódios do povo”. Os judeus, que haviam invadido o mundo, sobretudo a partir da diáspora forçada em de finais do século XV, ameaçavam tomar a capital: “Que havemos então de dizer da massa parda de gente que circula em Lisboa, que enxameia os centros de reunião, - os teatros, os clubes, os cafés?!... Esses centros são verdadeiras sinagogas! Os nossos amigos que entram e saem são os conversos de 1496, os cativos d’outrora, e os sobreviventes da matança de São Domingos! [referia-se ao massacre judaico de 1506 em Lisboa] Se Paris é a capital d’Israel, Lisboa, é a capital de Judá!”. Aliás, o autor não tinha dúvidas quanto à fácil identificação de um judeu, através de uma simples observação à vista desarmada: “Não é difícil descortinar um judeu pela simples aparência. Com uma experiência de alguns anos, e muito mais por instinto que por experiência, qualquer pessoa está apta a apartar os hebreus dos não-hebreus. A fisionomia, o feitio dos ombros, o modo de andar (e, ainda que pareça exagero ou gracejo, o próprio modo de usar o chapéu, que, na generalidade, é mais puxado para a frente que para trás, por virtude, sem dúvida, da conformidade craniana), deixam-nos facilmente aperceber do tipo judaico”. Já em 1921, de Mário Saa, havia sido publicado o também célebre Portugal Cristão-Novo ou Os Judeus na República, em formato de entrevista, conduzida por Guilherme de Lencastre. O livro exibe uma despudorada citação do entrevistado na folha de rosto: “Entrar no Parlamento português o mesmo é que entrar numa Sinagoga”. Depois de atribuir aos judeus a responsabilidade pela Revolução Francesa de 1789 e pela Revolução Russa de 1917, desfia o rol dos “judeus republicanos”: “Afonso Costa, António Maria da Silva, Brito Camacho, Rodrigo Rodrigues, António Granjo, todos, todos financeiros, políticos, bacharéis, tudo isso é a directa descendência do cristão-novo! Tem sido uma vingança étnica; o godo bate em retirada, ou fica irrisoriamente no exército simbolizando a força física submetida à força mental! O descendente do inquisidor é inquisitoriado pelo cristão-novo!”.

Foi tal o fervor antissemita na identificação dos invasores judaicos da vida portuguesa, que Mário Saa confundiu António Cabreira com o seu irmão, Tomás Cabreira, conhecido republicano, o que levou o primeiro a publicar um manifesto de desagravo (A Voz do Sangue, 1925), em que, após aturadas investigações sobre as suas características físicas e mentais, por “autoridades na matéria”, se concluiu que António Cabreira, que até era legitimista desde 1885, director interino da Nação, presidente da Assembleia Geral do Grémio Português Legitimista e chefe do Partido Legitimista no Algarve, se sentia ofendido com tão arreliante confusão de personalidades e se livrara do semitismo por uma “unha negra”. Na realidade, Saa havia trocado as fotos dos irmãos Cabreira e atribuía-lhe origens hebraicas devido ao “feitio semítico dos olhos”, mas um “rigoroso estudo científico”, concluiria que António possuía uma boca de caráter, grandes olhos inteligentes e expressivos, de pensador e poeta, descendia de heróis desde os primórdios da nacionalidade, não havia cristãos-novos entre os seus antepassados e vários depoimentos o atestam, designadamente o de Teófilo Braga, que lhe atribuía a qualidade insofismável de “devoção cívica”… Obviamente, com todas estes indicadores “científicos”, António não podia ser judeu! Mas, se dúvidas persistissem, o infalível método da medição do índice encefálico daria a última machadada na “atoarda” de Mário Saa. É que o nosso revoltado Cabreira tinha um índice encefálico de 78,01 e, como os judeus possuem um índice cefálico inferior a 75, António Cabreira via o seu nome dignamente limpo (e devidamente publicitado em livro) de qualquer horrorosa suspeita semítica por uns expressivos 3, 01 (ou seja, 4%!...). Notável!

Um outro importante reduto antissemita foi o periódico Serviço d’El-Rey (1923-1933), órgão oficial das Juventudes Monárquicas Conservadoras, editado no Porto e representando os integralistas nortenhos. Logo no seu primeiro número surge um artigo de Butmi & Nilus e intitulado “Os Judeus na Política Mundial”, esclarecedor da visão dos seus mentores sobre a questão judaica: “Para ninguém é hoje segredo que existe um Imperialismo Judaico. Os próprios o confessam. Os Judeus têm sobre todas as outras raças a grande vantagem de confundirem a sua história com a sua religião. Sobre as suas bases religiosas estão organizados e reunidos em todo o mundo e só assim se pode compreender a sua enorme força e continuidade histórica”. Quanto à situação portuguesa, Butmi & Nilus considera “…a influência Judaica ser já muito sensível em Portugal, principalmente entre as classes operárias, cujos mentores são dirigidos por Judeus”. Noutro artigo, bem violento, por sinal, César de Oliveira avaliava o “polvo semítico” nos seguintes termos: “Raça maldita de Deus e dos homens, expulsos primeiro das colectividades nómadas pela honesta repulsa das tribos; escorraçados mais tarde da própria pátria pela cólera sagrada de Deus – eram deicidas e ladrões os salteadores que a fatalidade dispersava e atirava às encruzilhadas da ganhuça. Errantes, ladravazes, gananciosos, eles se espalhavam por toda a Europa, mal refeita ainda do bárbaro abalo das invasões, e por onde a judenga passa ou se estabelece, passa ou fixa-se o ancestral roedor da usura e do mercantilismo semítico. Adolescente ainda, a sociedade nova defende-se: expulsa-os, absorve-os, isola-os, chacina-os”. O autor não podia ser mais claro quanto às estratégias de aniquilação da “judenga”: se a assimilação não resulta, então, isolam-se; se a guetização não resolve a “questão judaica”, então, expulsam-se; se a expulsão não acaba de vez com a “perfídia judaica”, então exterminam-se! Francisco Pereira de Sequeira, o director do Serviço d’El-Rey, verdadeiramente preocupado com o “abastardamento da raça”, alerta para o perigo evidente: “Estas considerações aproximam-nos do gravíssimo Problema dos Cristãos Novos de que muitos conservadores sistematicamente se têm arredado – protelando, assim, a resolução dum conflito que, de hora a hora, se afigura mais grave: e que se agrava, unicamente porque muitos dos que se dizem, e sinceramente, conservadores, não sabem delimitar os termos da questão (…)”. Estávamos em 1924 e o problema já nem eram só os judeus. À boa maneira inquisitorial, o “perigo cristão-novo” era recuperado numa versão mais abrangente, mais esotérica, como convinha aos arautos da silenciosa conspiração judaica, que irromperia das trevas e subjugaria o mundo. Monárquicos conservadores, como se consideravam, os combatentes ao Serviço d’El-Rey, não descuravam a crítica de costumes sociais e culturais, também eles, perniciosamente subvertidas pela judiaria: “O operário inveja o burguês que anda de automóvel e também quer andar de automóvel; o operário vê o burguês ir para os teatros e cinematógrafos e clubes e vai também; vê-o nos cafés de luxo a tomar bebidas caras e também as quer beber; e os automóveis, os teatros, os cinematógrafos, os cafés, são dos judeus. Procurem bem, que às claras ou ocultas, por si ou por terceiras pessoas, lá encontrarão sempre o judeu nas empresas exploradoras de todos esses artigos de prazer”. Enfim, os judeus estariam a protagonizar uma autêntica revolução nos costumes portugueses... Outra responsabilidade atribuída aos judeus foi a das Invasões Francesas, cuja “verdadeira culpa” foi dos “miseráveis agentes da Maçonaria e do Judaísmo”, como afirmava o director da revista monárquica, que, dois números depois, regressava à questão judaica, com um retrato desalentado do povo português: “Povo essencialmente impressionável e brando, capaz dos mais extremos feitos de heroísmo ou das mais espantosas e inesperadas abjecções de carácter, torna-se, desde que o deixem abandonado aos seus instintos e ao livre direito de escolher, num monstro desenfreado, mas sujeito ao primeiro mandão que lhe apareça, ao primeiro fetiche que a sua atrasadora e complicada ancestralidade de moiro, judeu e preto lhe faça indicar em horas de crise – todas as vezes que pretende fugir ao respeito por Deus e à legítima autoridade do rei, seu Chefe Natural”. Curiosa, esta diatribe de Francisco Pereira de Sequeira, porque acertou na “mouche” quanto à sujeição do povo ao “mandão” que viria de Santa Comba-Dão, mas não pela via eleitoral, como o autor profetizava, receoso da democracia. Em finais de 1924, um artigo chama a atenção para o mais relevante “fenómeno” que se manifestava nas sociedades contemporâneas, a “Revolução” que ameaçava os três pilares da “Ordem social”, a saber: a religião, a família e a propriedade: “E quem está orientando a Revolução, que se desenrola desde o século quinze, sua origem, até à sua quase efectivação em nossos dias, no momento que passa? O espírito judaico, está hodiernamente em tal evidência que a ninguém é lícito desconhecê-lo, nem descurar os factos, bem patentes, que se estão sucedendo na hora presente. Tal é o singular fenómeno, caracterizador da idade contemporânea”. Até o ar que respiravam estaria contaminado pela presença judaica: “Grave, imensamente grave, a maior de todas, é esta última crise, em que temos o inimigo portas adentro: Os reis da primeira dinastia expulsaram os mouros que não puderam exterminar; os melhores da segunda expulsaram o judeu avaro e refalsado. Os primeiros confinaram-se nas suas terras do norte de África, mas os segundos, como gazes deletérios e maléficos que se espalham na atmosfera levados pelo vento, pela quietação do ar voltaram a pousar sobre a superfície da terra que tanto sangue generoso fecundou (…) Este é de todos os inimigos o pior, como gazes asfixiantes foram o pior flagelo da guerra: invisível, imponderável, actuando de dentro para fora, quando se constatam no indivíduo os seus efeitos, raro se pode valer ao doente”. Esta fobia pelo misterioso, pelo invisível, pela subversão silenciosa, subterrânea, paulatinamente organizada para a subjugação da civilização cristã, com a finalidade última do domínio absoluto do mundo, assentava bem no secretismo alegadamente maçónico do “espírito judaico”.

Uma outra revista, a Acção Realista, órgão da Acção Realista Portuguesa, criada por uma cisão do Integralismo Lusitano, liderada por Alfredo Pimenta, também refletiu a ideia antissemita como aceitável entre os “realistas”, durante os últimos anos da República. Laertes de Figueiredo assinava, no segundo número daquele periódico, um artigo doutrinário intitulado “O momento monárquico”, considerava o “Judaísmo desenfreado” como um “cancro social”, que contrariava o regresso ao passado, aos valores tradicionais, a obsessão do conservadorismo doentio que procurava a todo o custo suster o avanço do tempo, vendo em toda a evolução um golpe mortal na tradição. Outro título recorrente da imprensa antissemita – “o perigo judeu” – assinalava a sua presença naquele periódico, agora pela pena do visconde de Porto da Cruz: “A aversão ao judeu, entre nós é instintiva e atávica. Apesar de alguns dos nossos escritores terem procurado em romances sentimentais aplacar repulsas do nosso Povo contra os hebreus, o certo é que toda essa série de enredos tão bem apresentada e tão habilmente feita para cair propiciamente no nosso temperamento afectivo e impressionável, resvalou e perdeu-se… ”. Trata de comprovar a acusação dessa “hora infeliz” da proclamação da República, que logo entregou nas “mãos execrandas do professor judeu” (Alfredo Bensaúde) o Instituto Superior Técnico. E desfia um rol de judeus “infiltrados” na administração pública pela mão dos republicanos, aduzindo “Então no comércio e na indústria não damos um passo sem toparmos com o nariz aquilino de um judeu com unhas recurvadas até às palmas das mãos! Mas a infiltração hebraica não fica por aqui, entre nós. Vemo-la no sangue deste povo católico, vamos descobri-la nas nossas associações de beneficência e até nas Nossas organizações monárquicas! Quando eu tive conhecimento de que a Direcção das Juventudes Monárquicas de Lisboa tinha aprovado a admissão de certos jovens judeus, fui o primeiro que bradei protestando energicamente contra a inconsciência com que se abriam as portas dos nossos baluartes a espias e delatores! Quiseram convencer-me então de que «em Portugal não havia perigo judeu». Retorqui com o relato da escalada de israelitas aos diversos cargos que atrás mencionei…”. Ao que parece, até as hostes monárquicas conservadoras já estariam infiltradas pelos conspiradores judeus. Compreende-se o pânico deste nacionalista inveterado e fica-se a saber que o discurso antissemita não reunia unanimidade entre eles, o que é muito significativo para a compreensão do fenómeno, justamente no segmento mais dinâmico da propaganda do mito do “complot” judaico-maçónico mundial. No mês seguinte, publica-se a segunda parte do texto do visconde de Porto da Cruz. Após algumas citações dos Protocolos, em que os judeus reconheceriam os seus propósitos de dominação mundial, o visconde conclui, resoluto: “(…) Entre nós a acção israelita não tem assumido este perigo tão acentuado. Mas pelos factos que tendo vindo apontando, pela infiltração deles no nosso exército, nas nossas escolas, na nossa vida de todos os dias, bom é andar alerta e de sobreaviso. Eles imiscuem-se em todas as camadas. Disfarçam-se. Afivelam todas as máscaras. A amizade é o disfarce que mais usam. Lembremo-nos de que Judas era Judeu e deixemos as muares, híbridos e estéreis, espinotear e equilibrar-se conforme os seus senhores lhe mandam pelo freio ou pela gamela… Desviemo-nos dos coices e para isso basta termos a consciência dos perigos e a certeza em nós mesmos”.

Veio o 28 de Maio de 1926 e a rápida ascensão de Salazar. O livro Crimes da Franco-maçonaria Judaica (1928), de Paulo de Tarso (pseudónimo de António da Silva Pena Peralta) é uma obra curiosa, precisamente porque faz a ponte entre os dois regimes. Escrito em 1924, só conheceria a letra de forma quatro anos depois. Este livro contém passagens verdadeiramente delirantes, que merecem constar dos anais do antissemitismo ideológico português mais demente, ombreando “meritoriamente” com um Mário Saa. O autor procurou sintetizar o pior do ideário antissemita, numa espécie de competição para ver quem conseguia proferir os mais chocantes dislates, parecendo querer agradar aos seus mentores políticos, talvez a entrever um lugarzito de alguma visibilidade que não consta ter conseguido. Paulo de Tarso não se detém perante qualquer obstáculo, mimoseando os hebreus com atenções extremas de raiva, ódio e demência descontrolada: eles são a “raça proscrita”, a “raça viperina”, o “maior mal da Terra”, procuram controlar a imprensa, os bancos, os clubes, os cafés, os bordéis, as universidades, os exércitos, a marinha, as escolas, os sindicatos. O livro contém todos os qualificativos possíveis e imagináveis, todas as acusações recorrentes da cartilha antissemita, tais como a responsabilidade por todas as revoluções, com uma perniciosa influência no mundo e no país e, para Paulo de Tarso, seria bem simples resolver a “questão judaica” em Portugal, seguindo os bons exemplos da nossa história: “É necessário fazer guerra sem tréguas aos judeus; nem repouso, nem quartel, nem pão, nem guarida. Fechem-lhes as Lojas Maçónicas e fechem-lhes as suas Sinagogas. São centros de conspiração e de crime. E depois de tudo isto, expulsem-nos, ponham-nos nas fronteiras, sem dó nem piedade, sentimentos que não deve haver para essa gente. A nossa tolerância, a nossa caridade, é que tem feito mal: - recebermos nas nossas cidades e nas nossas aldeias essa raça; e o que é mais ainda, recebê-los nas nossas casas, nos nossos clubs, nos nossos teatros, nas nossas associações, fazermos negócios com eles, apertarmos-lhes as mãos, em vez de lhes apertarmos as goelas”. E que não adormecessem as consciências portuguesas, pensando que estaríamos a salvo da tenebrosa Judiaria Internacional: “O Perigo Semita é um facto entre nós portugueses, como de resto o é em quasi todos os países da Europa, viciada, pelas chamadas ideias avançadas”. Mas, se pensávamos que já tudo estava dito, que as mais bizarras criações mitológicas antijudaicas, os mais inimagináveis preconceitos antijudaicos, que viam a influência judaica em tudo o que era canto, em tudo o que era hábito perverso, em tudo o que de diabólico podia ser concebido pela mente humana, ainda faltava o cúmulo do delírio. Paulo de Tarso deu um passo mais no sentido da total alucinação judeofóbica, com um contributo tão risível quão preocupante pela singeleza com que expõe mais uma via judaica para a conquista do mundo. Trata-se do futebol: “Há presentemente um jogo perigoso nos países europeus, jogo que vai criando fanáticos, apaixonados, e que tende a desnacionalizar as nações. Refiro-me ao «Foot-ball». E julgam que me insurjo contra este jogo por ser anti-higiénico, por prejudicar a saúde, o calçado e os pulmões? Julgam que detesto este jogo por ser um enormíssimo factor de tuberculosos, canelas partidas e morte no Hospital de São José com um pontapé? Não, leitores. Eu detesto este jogo por ser cosmopolita, desnacionalizador”.

Só em finais dos anos 30 regressariam os indícios sérios da “questão judaica”, num país com uma minúscula comunidade israelita, que não teria mais do um milhar de almas nesta época. O diário católico monárquico A Voz, numa série de artigos assinados por V. Borges, publicados entre março e maio de 1938, subordinados ao revelador título de “Alerta”, a questão judaica regressa com uma violência renovada. O cenário de fundo era a entrada em Portugal de judeus polacos e alemães, em fuga da besta nazi e o motivo próximo foi a inauguração da Sinagoga do Porto (Mekor H’aim - “Fonte da Vida”) em janeiro de 1938, cuja cerimónia de colocação da primeira pedra ocorrera nove anos antes. Com efeito a “Obra do Resgate” dos marranos do Norte, encetada pelo capitão Barros Basto, constituíra pretexto para que se levantassem algumas vozes antissemitas. A Voz, reconhecendo uma certa integração à comunidade judaica de Lisboa, vira-se para a comunidade do Porto: “Aparecem agora, todavia, instigações e diligências promovidas de fora para proselitismo e manifestações confessionais junto dos que há séculos abandonaram o judaísmo e são cristãos, com dinheiro de fora, erguem-se sinagogas, estabelecimentos de ensino chamados seminários, alimenta-se essa propaganda judaica nos centros em que há a descendência dos antigos cristãos novos, com prejuízo da unidade moral e da paz religiosa da Nação portuguesa” (A Voz, 21/3/1938). Em consequência, o autor deste editorial da Voz sugere a vigilância daquelas comunidades, recuperando o mito da conspiração judaico-maçónica mundial: “Vigiaremos atentos as manobras de proselitismo que se revelam em diferentes pontos, de Norte a Sul do País, promovidas por um dos ramos mais perigosos e sectários da Maçonaria no qual só são admitidos judeus. Não se deve esquecer que por toda a parte o judaísmo militante se alia com a Maçonaria e dá largo contingente à acção revolucionária e bolchevista”. Denunciadas as “manobras” judaicas, segue com a publicação do artigo inaugural da série de V. Borges, que apela à vigilância aos “católicos e nacionalistas portugueses”, chamando a sua atenção para “a necessidade de evitar que criassem raízes no nosso solo as ervas daninhas que Adolfo Hitler arrancara da terra alemã e que para cá se vão transplantando, à mistura com outro elemento honesto que constituía uma reduzida minoria”. Tal como o editorialista, V. Borges desculpava à pequena e integrada “colónia israelita de Lisboa” o facto de serem judeus, uma “raça (…) cujos erros são bem conhecidos”. Se os judeus do Norte seguissem o “caminho honrado” dos de Lisboa, ele não teria clamado por este oportuno “alerta”. Mas, “a sinagoga do Porto preferiu enveredar por atalhos bem sombrios, favorecendo a emigração de elementos perturbadores, ligando-se a uma obra internacional”. É uma referência explícita à imigração judaica proveniente da Alemanha, Áustria, Rússia e Polónia. Noutro artigo, Fernando de Sousa, abre com um “grito de «Alerta» contra manejos para a judaização de certos católicos portugueses e possível invasão de elementos estrangeiros indesejáveis e contra secretas ligações revolucionárias”, deixando em paz os “judeus portugueses”, a quem “ninguém pensou ou pensa em hostilizar”. Quanto aos “estrangeiros”, o caso apresentava-se bem diferente, pois “vêm com o apoio de sociedades secretas e com dinheiro estrangeiro exercer uma propaganda perturbadora da paz social e religiosa em Portugal”. Numa pequena coluna intitulada “Das Ideias & dos Factos”, garante-se que A Voz não pregava a perseguição judaica, antes adoptava uma atitude de prevenção contra “o movimento que se esboça e poderia tornar a nossa pátria nova terra de Canaã” e que “somos contra o antissemitismo de outros povos, para não termos nós de ser antissemitas”. Tal como o “Alerta!” de V. Borges, a coluna “Das Ideias & dos Factos” faz coro com a campanha racista antijudaica, multiplicando as explicações sobre o seu alegado distanciamento do antissemitismo e juras de filossemitismo para com a Comunidade Israelita de Lisboa. Mas, o problema estaria no número de judeus: “Está a ser muito discutido em todo o mundo o problema judaico. Mau sintoma. Quando não se fala de judeus é porque a percentagem deste elemento estranho é a comportável e os países não se sentem molestados por ele. Do caso se pode dizer o que do organismo humano se diz: os órgãos estão bons quando não se dá por eles. Quando todos os dias nos lembramos da sua existência, é que algum mal os atingiu…”. No terceiro mês de campanha antissemita da Voz, V. Borges acusava os judeus de assestarem baterias contra o Estado Novo: “Não admira, porém, que, em tal momento, todas as forças «teóricas» se conjuguem contra nós e procurem contrariar a obra do Estado Novo. É nesta altura que nos aparece a invasão dos judeus, e dos judeus vindos do centro da Europa (…)”. De resto, V. Borges repete a tese da intolerância: “Não temos o direito de nos deixar levar por um sentimentalismo falso e abrir os braços àqueles que, perseguidos, se humilham e manobram a arma da lisonja, para depois, quando senhores, serem cruéis como poucos (…) Por amor de Deus, não nos deixemos invadir por uma tal gente!”. Se essas forças secretas e de ambições desmedidas investiam numa “terra desconhecida”, era porque pretendiam “erigir um templo numa cidade onde o número de judeus era reduzidíssimo mas que mais tarde poderia vir a ser a sede de um forte movimento judaico”. Estava tudo explicado! A esta óbvia maquinação hebraica havia que contrapor a vigilância activa para defender Portugal da conspiração judaica mundial em marcha.

Apesar de no início dos anos 40 já se verificar algum abrandamento na polémica antissemita, designadamente na imprensa, vale a pena determo-nos, ainda que brevemente, em dois sintomas reveladores de que a questão não estava definitivamente encerrada. O primeiro, concretizado em duas cartas endereçadas pelo conde de Alvelos, Chefe Tradicionalista da Beira, a D. Duarte Nuno, o “pretendente” ao trono português, exilado na Suiça. Na primeira, datada de junho de 1940, afirma “Que Hitler terá talvez razão em destruir a ferro e fogo tanto sofisma judeu!”. A segunda, ainda consegue ser mais afrontosa. Na verdade, o dirigente miguelista da Beira queixa-se do “terrível momento que passa, - terrível não pelos ventos de leste, mas pelo cheiro de sionismo de que vamos impregnados e de que toda a maquinaria governamental anda eivada…” (23/7/1940). Nem Salazar satisfazia as hostes legitimistas, grandes entusiastas que eram do nacional-socialismo alemão. Francisco Perfeito de Magalhães e Meneses prossegue: “Como é notório, Hitler odeia os judeus e afasta-os da interferência da administração e até do contágio racial, na sua Germânia. (…) De França, importamos a escarlatina democrática-maçónica da “liberdade-igualdade-fraternidade” – trazida nas mochilas dos soldados napoleónicos. Da Germânia, mais de um século volvido, nos vem agora reacção igual e contrária a essa acção dissolvente. Esta reacção de hoje, pode concretizar-se no lema que é lábaro da guerra que passa: - batalha sem tréguas aos judeus!”. Preocupado com o “avanço da judiaria internacional”, prossegue: “E esta reacção contra o Capital judeu, avança como mancha de azeite, avassalando todos os Estados que o pan-germanismo aglutina para os Estados Confederados da Europa… (…) aqui paradoxalmente alheados do que lá fora se passa, fazendo festas perante a Europa de luto, teremos de sentir o estrondo da derrocada do sistema capitalista, quando os exércitos alemães entrarem no antro do inimigo nº 1 que é o dinheiro, isto é –Londres Esterlina!”. Esse “perigo iminente” ameaçava o nosso país, pois, tal como os nacionalistas haviam proclamado durante a República, devia-se ao facto de o poder estar dominado por judeus: “É que em Portugal raro será o homem da situação actual, que não seja de sangue judeu, mais ou menos e antes para mais, do que para menos… Quando a mancha de azeite alastrar até cá, que farão estes senhores rabinos?”. A solução era óbvia e apenas uma: “Venha quanto antes a monarquia, mesmo antes do fim da guerra, sobretudo antes da assinatura da paz, para não sermos envolvidos na destruição dos Talmudes das Sinagogas». (…) Fazer uma monarquia com gente não judia. – eis a salvação”.

O segundo sintoma veio de um velho antissemita, nosso conhecido dos primórdios da República. Estamos a falar do padre Amadeu de Vasconcelos. No livro A Idade Maçónica (1943), revela-nos a velha fobia da conspiração judaico-maçónica: “Mas um outro facto, importantíssimo, verdadeiramente essencial para o estado actual da Maçonaria no mundo, intervém para estreitar as ligações da Maçonaria inglesa com as Maçonarias estrangeiras. É o Judaísmo. Se é absolutamente impossível separar o imperialismo britânico da Maçonaria, tão indissoluvelmente estão ligadas estas duas forças na própria cabeça do Império, a Casa Real Britânica, também debalde tentaria separar o Judaísmo da Maçonaria, de modo que a trindade – Imperialismo britânico, Maçonaria e Judaísmo – constitui a maior força internacional que, em todos os tempos, no mundo se levantou”. Assim, não admirava – continua Amadeu de Vasconcelos – que juntassem interesses comuns, para manobrarem, sob “falsas tendências democráticas”, a política internacional: “A Sociedade das Nações foi o último e charlatanesco disfarce duma só vontade judaico-maçónica”. E deixa o aviso: “Sem o conhecimento desta verdade histórica que é hedionda mentira política, paga pela humanidade com o maior e mais sangrento cataclismo que sobre ela tem caído, fica incompreensível a reacção violenta que nos estados totalitários se levantou contra os Judeus. Estes pagam simplesmente os erros e os crimes da oligarquia judaico-maçónica que no mundo impôs a sua vontade nos últimos decénios”.

 

A SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX

A espantosa descoberta da Shoah no final da Segunda Guerra Mundial retirou espaço à questão judaica na opinião pública internacional, reduzindo drasticamente as manifestações antissemitas na literatura e na imprensa escrita, tal como se apresentava entre os anos 20 e 40. Portugal não fugiu a esta tendência generalizada no mundo ocidental. A consolidação do Estado de Israel e a relativa distanciação que os anos 60 já permitiam, num país que saíra da Guerra preservando a ditadura salazarista, proporcionariam condições à emergência pontual do antissemitismo ideológico, quanto mais não fosse, como acerto de contas entre os integralistas, assimilados pelo Estado Novo. Com efeito, uma singular polémica entre dois nacionalistas, durante o ano de 1962, fizeram ressurgir a questão judaica e o seu lugar no ideário integralista. Tudo começou com a publicação do livro Destino do Nacionalismo Português, de António José de Brito, que afirmava, a dado passo: “Tanto a Action Française como o Integralismo Lusitano abordaram o problema das necessárias defesas rácicas da nação, acentuando o princípio geral duma forma particularmente aguda ao enfrentar o problema judaico, e merecendo, assim, com justiça, a qualificação de antissemitas”. Para além da controvérsia que iria gerar, ao atribuir características antissemitas ao Integralismo Lusitano, o autor acrescenta a sua apreciação sobre a questão judaica: “Compreende-se, aliás, que a questão judaica seja encarada de forma especialmente atenta. É que o Judeu não é um simples indivíduo estranho à formação da nação, não é um estrangeiro vulgar – é (inconscientemente, acaso) um inimigo nato de todas as nações (…) Assim, o Judeu, por definição exerce uma acção perturbadora no seio das pátrias. Há, pois, que vigiá-lo cuidadosamente e recusar-lhe por sistema (fora casos muito excepcionais) a igualdade de tratamento que reclama. Isto não quer dizer que sobre ele pese uma maldição e que não possa de modo nenhum ser assimilado”. Esta espantosa assunção do antissemitismo, que só admite o judeu se ele for assimilado, isto é, se deixar de ser judeu, – embora sem a principal característica racista antissemita da impossível assimilação judaica –, constitui um bom exemplo da permanência desse pensamento entre os nacionalistas, já na segunda metade do século XX. Estas passagens do Destino do Nacionalismo Português originariam uma polémica, que duraria quatro meses (de junho a setembro desse ano de 1962), de respostas e contra-respostas, no Debate (Jacinto Ferreira) e no Correio do Minho (António José de Brito). Jacinto Ferreira, a propósito da publicação do livro de Brito, assinaria um editorial no Debate, em que começava por lhe atribuir “uma forte formação totalitarista e racista”, mais germanofilista que o seu mestre Alfredo Pimenta e hitlerista inusitado, que “se arrepiava quando ouvia o Fuhrer dizer: o meu povo”. Dizia isto, considerando que até lhe seria agradável, pelo reconhecimento da fidelidade de Brito a Hitler. Ferreira prossegue a sua crítica ao livro de Brito, quanto às suas afirmações de que o Integralismo Lusitano havia sido antissemita: “Quanto ao antijudaísmo, pode-se afirmar que ele só acidentalmente se revela em escritos políticos de doutrinadores integralistas, e nunca com carácter basilar, mas apenas consequente. (…) Por isso esta característica antissemita aplicada aos nacionalismos parece-nos inteiramente gratuita e só proveniente da deformação nazista de António José de Brito”. Ficamos, então, a saber que o Integralismo Lusitano não inscrevera o antissemitismo na sua ação programática, “apenas” o assumia como “consequência” do seu ideário. Brito responderia no mês seguinte com um conjunto de três artigos, intitulados “Destino do Nacionalismo Português” no jornal Correio do Minho. No segundo artigo, aborda a questão judaica e enumera quase toda a obra de António Sardinha, para justificar o seu antissemitismo recorrente. Refutando que Sardinha fosse um caso isolado, cita também Pequito Rebelo e Hipólito Raposo, para concluir: “O prof. Jacinto Ferreira, por eu afirmar que o Integralismo Lusitano foi antissemita, acusa-me de «deformação nazista». Se depois de toda esta longa enumeração ele continuar a sustentar que, por parte de doutrinadores integralistas, apenas houve raras alusões ao judaísmo, então é porque estamos perante um raro caso de descarada deformação… da realidade e dos factos”. Na verdade, os exemplos (que são bem mais do que estes) dão razão a Brito quanto à importância do antissemitismo entre os integralistas. Finalmente, no terceiro artigo desta série, concede: “Admitindo que, infelizmente, não haja um problema judaico no nosso país, será absurdo perfilhar, entre nós, uma atitude antissemita? Não nos parece”. O problema residiria, afinal, em continuar-se ou não vigilante em relação ao “perigo judaico”. O que se deve relevar desta polémica não é a discussão da matriz antissemita do Integralismo Lusitano, mas o facto de, em 1962, ser possível dois antissemitas promoverem um debate público em que, impunemente, assumem o seu próprio racismo, apesar de se tratar de vozes isoladas e sem alcance, quer no regime, quer na sociedade portuguesa da segunda metade do século XX. Ambos sabiam perfeitamente o que era ser-se antissemita, não o contestavam (bem pelo contrário), apenas tinham uma divergenciazita sobre a relação do Integralismo Lusitano com esse ódio ao judeu.

Década e meia mais tarde, assistimos a uma reedição que causa, no mínimo, alguma perplexidade, atendendo a que estávamos em pleno Portugal democrático: trata-se da 2ª edição dos Protocolos dos Sábios do Sião. Recorde-se que a primeira data de 1923, traduzida sob os auspícios das Juventudes Monárquicas Conservadoras. Embora não seja caso único, não deixa de ser simbólico que ressurgisse exactamente em 1976. O seu prefaciador, Fernando Ferreira, justifica essa iniciativa por razões puramente “democráticas”, pois considera que de verificaria em Portugal, à data, “uma carência quase total de obras de feição anti-semítica, enquanto que as de feição contrária se encontram às pilhas em qualquer livraria”. Com esta singela atitude “democrática” fica explicada a equidade entre os antissemitas e os filossemitas, pois que estes últimos estariam em vantagem editorial. Obviamente, F. Ferreira sabe que a sua pretensa neutralidade não seria de todo possível e, mais adiante, esclarece de que lado está verdadeiramente: “Incontestáveis e incontáveis foram as perseguições de que os judeus foram vítimas em todos os países pelos quais se dispersaram. Na Europa, sobretudo, quase se não passou uma década sem que, num país ou noutro, desde a Rússia até Portugal, tenham eles sido vítimas de pogromes mais ou menos cruéis”. Mas, se estivéssemos à espera que condenasse o antissemitismo europeu, logo ficaríamos conscientes exactamente do contrário: “Isto sucede aos judeus e não a outras raças! (…) Procedimentos tão díspares deverão ser objecto de meditação sobre as respectivas causas”. O que teriam, então, os judeus para que sobre eles recaísse tal condenação eterna? O problema, como esclarece mais adiante, é “o perigo judaico, que se manifesta por tantos sintomas e por tantos factos” e que os Protocolos viriam “desmascarar”, finalmente!...

A democratização do país após o 25 de Abril, aparentemente, não oferecia nenhum pretexto para emergências antissemitas e o mito conspiratório já deveria ter caducado. Mas, este, também teria o final do século à sua espera, ainda com vozes disponíveis para o gritar à primeira evocação da questão judaica no Portugal democrático. Com efeito, no Verão de 1997, durante a pré-campanha eleitoral para as eleições autárquicas, o general Carlos Azeredo, candidato à Câmara Municipal do Porto, publicou o artigo “O ouro «nazi»”, no Jornal de Notícias, a 1 de agosto. O general, a propósito da polémica em torno da atitude portuguesa face ao ouro nazi, assumiu posições antissemitas que causaram a perplexidade geral e a inusitada defesa de algumas figuras da política nacional: grafava Holocausto entre aspas, insinuava que o Estado de Israel também poderia ter dinheiro proveniente de “lavagens” criminosas e, despeitado com a possibilidade de Portugal ter de devolver o ouro roubado pelos nazis aos judeus e entrado em Portugal através de negócios com a Alemanha, o general-candidato invocava a famigerada usura para alertar os portugueses: “(…) não deixa de intrigar negativamente os portugueses a passividade, a espinha dobrada dos nossos governantes que aceitam a fiscalização das nossas reservas de ouro sem «tugir nem mugir», pelos representantes de uma nação que, a par de grandes conquistas para a humanidade, foi também a «inventora» da usura que muitas vezes ao longo da história a tornou mesmo odiosa e perseguida por inúmeros povos”. A ignorância do general – que ressuscitava o estigma antijudaico do usurário, que devia estar morto e enterrado, atribuía a origem do antissemitismo a esse facto e não à intolerância e ao racismo e confundia religião com nação –, poderia (deveria) ter morrido ali mesmo. Mas, por motivos de ordem política, várias personalidades afetas àquela candidatura, vieram a terreiro justificar o injustificável, ou pior, bem pior, acrescentar alguns pontos mais à infâmia. Azeredo responderia ao coro de críticas piorando a situação, questionando os julgamentos de Nuremberga, por ser “um tribunal em que os inimigos vencedores julgam o inimigo vencido”, alegando que os crimes nazis só teriam sido conhecidos no final da guerra (o que é uma comprovada mentira!) e reafirmando o estigma da usura, com citações bíblicas e assegurando que nada tem “contra os concidadãos da comunidade judaica de Lisboa, onde tenho amigos que admiro”. De salientar a necessidade que todo o antissemita tem de garantir que até tem amigos judeus, antes de os vilipendiar. Embora sem significado social, o caso revelou, mais uma vez, a má consciência dos nossos pecadilhos históricos. Mais um indício de que a história da Inquisição e dos judeus não foram devidamente estudadas e interiorizadas pelos portugueses, que nem sequer integram esta última nos currículos do nosso ensino básico e secundário com a amplitude que merece, pois a Inquisição foi a principal responsável pelos 275 anos de discriminação e de estagnação intelectual e económica.

 

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