A forma como (não) tem sido tratada a Inquisição em Portugal leva-nos a crer que esta instituição, que vigorou em Portugal durante quase três séculos, nunca existiu. Parafraseando uma célebre frase sobre a polícia política da ditadura então derrubada, que fez caminho logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, resolvemos dar este título irónico ao pequeno texto abaixo.
O ÉDITO DE EXPULSÃO E O BAPTISMO FORÇADO
“(…) A alegada fatalidade cronológica pela qual a Inquisição teria apenas usado das armas próprias de seu tempo, cede diante da existência, no mesmo período, de ideias de que derivaram factos históricos opostos. Era só escolher entre o bem e o mal, independentemente de qualquer fanatismo. Porventura, quando D. Manuel decretou a expulsão dos judeus do Reino, não se opuseram a ela energicamente várias personalidades do seu próprio tempo?”
Elias Lipiner, Os Baptizados em Pé.
Em 31 de Março de 1492 os Reis Católicos assinaram o Édito de Expulsão dos judeus de Espanha, o que implicava que se convertessem ao cristianismo se pretendessem permanecer naquele reino. Dezenas de milhares de judeus espanhóis preferiram abandonar a sua pátria e preservar a sua religião, exilando-se no estado vizinho. D. João II consentiu a sua entrada em território português, mediante as seguintes condições: só entrariam por Olivença, Arronches, Castelo-Rodrigo, Bragança e Melgaço; deveriam pagar oito cruzados por cabeça na fronteira, pelo que receberiam um salvo-conduto; só deveriam permanecer no país pelo prazo de oito meses, findo o qual seriam feitos escravos se não saíssem; o rei comprometia-se a fornecer-lhes navios para os levar para fora do reino.
A salvação dos judeus espanhóis constituiu um rentável negócio régio, que até o povo aproveitou. Esgotado o prazo de oito meses de autorização de permanência dos judeus espanhóis em Portugal, D. João II não lhes disponibilizou navios para locais que os próprios interessados escolhessem, mas apenas para Tânger e Arzila, onde a soldadesca e os mouros os maltratavam e roubavam. Muitos, acabariam por preferir regressar a Portugal e sujeitar-se à escravidão. Mas, o pior estava para vir. Foi o célebre episódio dos “meninos de S. Tomé”. Em 1493, inauditamente, João II tomou a decisão de mandar tirar aos judeus os filhos menores e entregá-los a Álvaro de Caminha, capitão da capitania da ilha de S. Tomé. De muito adverso clima, cheia de perigos, dos quais se destacavam os abundantes crocodilos, a maior parte das crianças seria dizimada pelos “lagartos”, como lhes chama Samuel Usque nas suas brilhantes páginas da Consolação às Tribulações de Israel,: “(…) cujos moradores eram lagartos, serpes e outras muito peçonhentas bichas (…) Finalmente chegados aqueles inocentes ao lugar deserto de S. Tomé que sua sepultura havia de ser atiraram-nos em terra, e ali despiedosamente deixando-os foram dos grandes lagartos de que a ilha era povoada tragados quase todos e o resto que no ventre daquelas bichas não entrou, a fome e desamparo se consumiram, somente algum que milagrosamente daquela temerosa fortuna foi escapado”.
D. Manuel sucedeu a seu primo e cunhado D. João II, em 1495, tendo endereçado uma proposta de casamento a D. Isabel, filha dos Reis Católicos. Após as insistências de seus pais, que lhe fizeram ver os interesses do Estado espanhol, a princesa acabaria por ceder ao alegado desinteresse em tal matrimónio, mas impondo a D. Manuel I a condição de que expulsasse os judeus de Portugal. O novel rei, não só cumpriria a promessa, como a excederia, decretando também a expulsão dos mouros, uma desnecessidade óbvia, porquanto nada representavam para o reino cristão, religiosa e etnicamente, ao contrário de Espanha, que submetera Granada em 1492.
A primeira decisão que o novo rei tomou em relação aos judeus ia no sentido da tradição régia da generalidade dos seus antepassados: concedeu carta de alforria aos judeus espanhóis feitos escravos na sequência da permanência no reino após os oito meses acordados com D. João II. Aliás, à semelhança do que acontecera com os seus predecessores, nutria um enorme respeito pela sabedoria judaica, o que se verificava na afeição pelo famoso médico e matemático Abraham Zacuto, o autor do Alamanach perpetuum (1502), que se notabilizara em Cartago e Salamanca, onde os cristãos não dispensavam os seus ensinamentos de astronomia.
A exigência manifestada por D. Isabel quanto aos judeus espanhóis decorreria, naturalmente, do projecto de seus pais de “limparem” a ibéria de judeus, o que estava bem patente no contrato de casamento com D. Manuel I, com quem viria a casar em 1497. O rei mostrava-se determinado no cumprimento de tal exigência, estranha à política oficial portuguesa, mas, mesmo assim, resolveu reunir o seu Conselho, onde as opiniões se dividiram. Os opositores ao intolerante decreto argumentavam que em Itália, na Hungria, na Alemanha, na Boémia, na Polónia e até em Roma os judeus eram autorizados a viver naquele tempo e que bem mais fácil seria convertê-los ao cristianismo se convivessem no nosso seio do que se instalassem entre os muçulmanos, onde lhes faltaria o “bom exemplo”. Para além do mais, os inconvenientes seriam significativos: eram numerosos no reino (entre 5 e 10% da população), eram os melhores artesãos, melhores médicos, astrónomos e matemáticos e detinham assinalável riqueza, o que iria favorecer os mouros em cujas terras se instalariam, se fossem expulsos de Portugal. Os partidários da expulsão recordavam os exemplos, no mesmo sentido, da França, da Inglaterra, da Escócia, da Dinamarca, da Noruega, da Suécia e da Espanha.
Os dados estavam lançados, tanto para a expulsão, como para a sua transmutação em baptismo forçado, pois que as desvantagens para o reino eram inultrapassáveis. Dar a expulsão dos judeus a Espanha com uma mão e retê-los no país com a outra seria o ideal. E foi justamente isso que D. Manuel I fez: decretou a expulsão em 5 de Dezembro de 1496 (segundo Damião de Góis) e baptizou-os à força na Páscoa de 1497. O Édito régio colocava, pela primeira vez em Portugal, em termos de exclusão, a relação entre cristãos e judeus.
Obviamente, não eram verdadeiros os pressupostos invocados por D. Manuel I de que os judeus estivessem a apartar os cristãos da sua fé, como invocava no édito. Finalmente, os mouros, que foram acrescentados à exigência castelhana de expulsar os judeus, eram uma manifesta vontade de agradar aos Reis Católicos, como o comprova o facto de não terem constituído alvo considerável do baptismo forçado, de motins e das perseguições da Inquisição.
No ano seguinte, o rei português reuniu o seu Conselho em Estremoz e avançou com a proposta de se retirarem aos judeus os filhos menores de catorze anos, para serem baptizados. Esta fanática e inédita decisão de D. Manuel teria a oposição de boa parte dos seus conselheiros, entre os quais se destacaria D. Fernando Coutinho, regedor das justiças e futuro bispo de Silves, que não acreditava que os judeus pudessem verdadeiramente converter-se à fé católica pelo baptismo forçado. Este súbito fervor católico do rei, que não recuou perante os justificados argumentos dos conselheiros que se lhe opunham, originou um drama indescritível. As mães apertavam seus filhos, que lhes eram vilmente roubados, preferindo matá-los, por asfixia ou afogamento nos poços, do que entregá-los à barbaridade cristã. A violência não afectou apenas os menores de catorze anos, como o próprio rei estipulara, chegando a ser tomados judeus de vinte anos de idade. O humanista Damião de Góis, conhecedor das Cortes de Inglaterra, Escócia, Dinamarca, Suécia, Noruega, Polónia e Rússia, que privara com Erasmo, Lutero e Melânchton, explicava, na sua Crónica de D. Manuel, por que tinha sido possível decretar a expulsão dos judeus de Portugal: enquanto os judeus não tinham pátria própria que os defendesse ou vingasse das atrocidades que lhes moviam no mundo cristão, os mouros tinham reinos onde viviam muitos cristãos, que estariam à mercê dum eventual desforço muçulmano.
D. Manuel, ao invés de disponibilizar navios no Porto, em Lisboa e no Algarve, para a saída dos judeus do reino, determinou a sua concentração em Lisboa, garantindo-lhes o embarque para o estrangeiro. A crer nos números de Damião de Góis, cerca de 20.000 judeus espanhóis provenientes de todo o país acabariam por ser conduzidos ao Palácio dos Estaus, futura sede da Inquisição. Esfomeados, sedentos e encurralados em espaço exíguo, à espera dos prometidos navios, seriam, no entanto, visitados por dois irmãos convertidos – mestre Nicolau, futuro médico da rainha D. Isabel, esposa de D. Manuel I e D. Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real –, dispostos a baptizá-los. Impossibilitados de saírem livremente do país, conforme fora prometido no Édito do ano anterior, seriam levados aos milhares às igrejas mais próximas e benzidos apressadamente contra a sua vontade. Arrastados pelos cabelos até à pia baptismal, mesmo os mais velhos, indefesos e renitentes judeus, preferindo alguns deles atirar-se aos poços e cisternas, numa inesquecível cena apocalíptica, que vários cronistas registariam e, entre eles, Damião de Góis.
Não passaria muito tempo até que D. Manuel exarasse nova portaria, desta vez para proteger os judeus, que ele bem sabia não se terem efectivamente convertido ao cristianismo – apenas os haviam obrigado a sê-lo formalmente –, de modo a preservá-los no futuro, pouco importando se continuariam, ou não, a judaizar. Com efeito, a portaria de 30 de Maio de 1497 estipulava que ninguém poderia inquirir os cristãos-novos sobre matéria religiosa durante um período de vinte anos. Tratava-se de uma verdadeira amnistia geral, duma formalidade que preservava os judeus sem judaísmo declarado, mas consentido. Compreensivelmente, os judeus, que já haviam sido expulsos de Espanha e estavam agora a ser aprisionados em Portugal, não acreditaram na sinceridade desta medida e trataram de abandonar o nosso país mal puderam, com suas famílias e bens. Os mais abastados, antes de saírem, negociavam letras de câmbio com os cristãos, para serem trocadas noutros países. Detectada esta astuciosa artimanha hebraica, que muito prejudicava o reino, o rei aprovaria medidas que contrariavam a estratégia económica e a finalidade migratória, através de dois alvarás, de 20 e 21 de Abril de 1499: o primeiro que proibia os negócios com judeus, e o segundo que impedia a saída do reino de conversos de 1497, sem licença régia, ambos sob pena de perda dos bens dos infractores. Apesar destas medidas, um considerável número de judeus terá conseguido evadir-se da prisão lusa, subornando alguns “zelosos” cristãos.
À entrada do século XVI nada melhorara para o país e para os conversos, a maioria deles judeus secretos, regiamente protegidos da inquirição à observância da verdadeira fé católica. O tradicional estigma medieval da sua culpabilização por todos os males que afectavam a cristandade regressaria em força por ocasião de uma devastadora peste que assolaria o reino no ano de 1506. Foi o já referido massacre judaico de 1506.
Na sequência deste que foi o mais terrível pogrom que houve em Portugal, D. Manuel viu-se forçado a alterar a sua política de proibição da saída dos cristãos-novos do reino, pela lei de 1 de Março de 1507 e proclamou a extinção da discriminação dos cristãos-novos: “(…) De todas e de cada uma das coisas sobreditas os fazemos livres e os desobrigamos e queremos e nos praz, que por bem das ditas obrigações e defesas, que sobre as ditas coisas eram feitas, lhe não sejam feito constrangimento algum. Lhe prometemos e nos praz, que daqui em diante não faremos contra eles nenhuma Ordenação, nem defesas como sobre gente distinta e apartada; mas assim nos praz, que em todos sejam havidos, favorecidos e tratados como próprios Cristãos Velhos, sem deles serem distintos e apartados em coisa alguma (…)”. Seu filho, D. João III, confirmá-la-ia, em 16 de Dezembro de 1524, a pedido dos cristãos-novos.
Criou-se assim uma situação complexa para os cristãos-novos, ora expulsos, ora baptizados à força, ora impedidos de sair do reino, ora autorizados a abandoná-lo, ora discriminados, ora equiparados aos cristãos-velhos. Estas foram as mais visíveis consequências do Édito de Expulsão para os próprios judeus portugueses e exilados espanhóis. Contudo, o país (tal como a Espanha) também sofreu os efeitos nefastos de tal decisão imprevista, afectando a organização administrativa do país, privando-o de uma substancial parte da sua nata intelectual – filósofos, botânicos, médicos, cosmógrafos, escritores, matemáticos – e lançando a sua disponibilidade e capacidade empreendedoras (no comércio, nas indústrias e na finança) em países como a Holanda, onde prosperaram e fizeram prosperar. Já Antero de Quental havia sentenciado, na sua célebre conferência proferida no Casino Lisbonense a 27 de Maio de 1871 (Causas da decadência dos povos peninsulares…), que essa dupla expulsão tinha empobrecido os dois estados ibéricos, paralisando o comércio e a indústria, ferindo de morte a agricultura no Sul de Espanha e fazendo desaparecer os capitais.
O ESTABELECIMENTO DA INQUISIÇÃO
Os tribunais peninsulares da Inquisição, estabelecidos em Espanha em 1478 e em Portugal em 1536, afastaram-se radicalmente do sentido e da prática das primeiras acções inquisitoriais medievais. Com efeito, o que presidiu à criação do Santo Ofício nos Estados ibéricos foi a presença judaica e a cobiça dos seus bens e fazendas. A atitude papal, quer em relação à Espanha, quer em relação a Portugal, não deixa dúvidas quanto à convicção pontifícia de que os reis ibéricos pretenderiam apossar-se dos bens dos crentes na Lei de Moisés. Mas, a história da Inquisição é anterior à questão judaica e não nasceu com intuitos exterminadores dos hebreus e do hebraísmo.
As tentativas efectivas para o estabelecimento dos tribunais da Inquisição em Portugal só se registariam no século XVI. Em Portugal, já D. Manuel I havia manifestado, em 1515, a intenção de introduzir aquele tribunal no reino, mas deixaria cair no esquecimento tal pedido, numa atitude conforme à sua política assimilacionista face aos judeus e ao judaísmo, que passou pela adopção de disposições legais nesse sentido, tais como a proibição, em finais de 1497, início de 1498, de casamentos entre cristãos-novos; a obrigação de permanência dos conversos no reino, em lei de 21 de Abril de 1499 (revogada a 1 de Março de 1507, pelo decreto de extinção da discriminação dos cristãos-novos); a interdição de ler e escrever em hebraico, para dificultar o contacto dos “baptizados em pé” com a Lei Mosaica. Para além disso, demoliram-se ou transformaram-se as sinagogas em igrejas, destruíram-se os túmulos judaicos e converteram-se os cemitérios em pastos, praças públicas ou outras construções. A sinagoga de Évora seria doada por D. Manuel, logo em 15 de Março de 1497, a D. Diogo Ortiz, bispo de Tânger e, para além das sinagogas, também seriam extintas as escolas e as bibliotecas judaicas, numa clara tentativa de extirpar o judaísmo e a cultura judaica de Portugal.
Com a subida ao trono de D. João III em 1521, a situação agravar-se-ia irreversivelmente. Apesar dos conselheiros mais tolerantes de D. Manuel terem exercido alguma influência sobre o jovem rei, este, demonstraria um ostensivo fanatismo antijudaico, que se aprofundaria ao longo do seu reinado. Os cristãos-novos veriam ainda satisfeita, em 16 de Dezembro de 1524, a sua solicitação da confirmação da Carta de Lei de 1 de Março de 1507, assinada por D. Manuel. Contudo, a posição social e económica que muitos cristãos-novos continuavam a ocupar no reino não ajudavam a fazer esquecer os estigmas populares, alimentados pela inveja e o fanatismo, despertado e estimulado pelo clero, que as pressões intolerantes da vizinha Espanha reforçavam.
O Tribunal do Santo Ofício foi estabelecido em Portugal pela bula papal de 15 de Maio de 1536, após uma longa batalha diplomática e corrupção activa junto da Santa Sé, por parte dos enviados de D. João III. Com efeito, desde as Cortes de Torres Novas, realizadas entre 15 de Setembro e 21 de Outubro de 1525, que aquele rei não descansou enquanto não conseguiu comprar ao papa a autorização para introduzir um tribunal religioso, semelhante a da vizinha Espanha, que funcionava desde 1485. E porfiou.
As consequências da criminosa acção do Santo Ofício foram deveras dramáticas para o judaísmo português (e para o país). Os números não são unânimes, mas vale a pena referir os mais conhecidos. Borges Coelho, no seu estudo sobre a Inquisição de Évora, fornece números muito reveladores sobre as suas vítimas. Entre os 8.644 processos da Inquisição de Évora (1533-1668) encontrou 7.269 acusados de judaísmo (84%), de cujos 445 relaxados (sentenciados à morte nas fogueiras), 99% foram condenados por judaizar. Nos processos da Inquisição de Lisboa (1540-1629), em 5.090 presos, 3.770 eram cristãos-novos (68,7%) e, excluindo os estrangeiros e acusados de pecado nefando, o valor sobe para 74,1%. Dos 340 relaxados, 328 eram acusados de judaísmo (96,5%). Quanto à Inquisição de Coimbra (1567-1599), a totalidade dos 144 relaxados foram acusados por judaizarem. São números esmagadores para quem ainda tivesse dúvida sobre os verdadeiros intuitos do Santo Ofício, embora haja valores ligeiramente superiores, que fazem subir para 24.522 o total das vítimas sentenciadas pelas Inquisição de Lisboa, Évora e Coimbra entre os anos de 1536 e 1732, dos quais 1.032 foram relaxados em carne e 422 relaxados em estátua. Francisco Bethencourt contabilizou 44.817 processos inquisitoriais nos quatro tribunais (Lisboa, Évora, Coimbra e Goa), entre 1536 e 1767, de que terão resultado 1.865 relaxados em Lisboa Évora e Coimbra (Francisco Bethencourt, História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália, Lisboa, 1994). Quaisquer que tenham sido os números, o “fero monstro” inquisitorial impôs a todo o Portugal (incluindo as colónias) um clima social, político, cultural e religioso, dominado pelo medo, pelo terror, pela castração intelectual, pela afectação de centenas de milhares de portugueses, se contabilizarmos todos os familiares dos condenados, ou dos meros suspeitos de judaizar.
Mas, nem todos os autores avaliam deste modo o papel criminoso (para as vítimas) e pernicioso (para o próprio país) daquele tribunal. Temos assistido, nos últimos anos, ao aparecimento de preocupantes sinais de branqueamento dos crimes do Santo Ofício. Particularmente em Espanha e em Portugal, onde as Inquisições foram instituídas tardiamente pela Santa Sé, se tivermos em conta as motivações da sua criação medieval, no tempo de Domingos de Gusmão. As singulares Inquisições ibéricas, após as campanhas de um proselitismo intolerante e das constantes pressões políticas clericais, foram solicitadas ao Papa pelo poder régio nos séculos XV (em Espanha) e XVI (em Portugal) e tiveram ambas como alvo central os judeus e o judaísmo de Sefarad.
Este inusitado esforço académico em que alguns historiadores – significativamente católicos – se empenharam, com a finalidade de minimizar hoje os efeitos da acção da Inquisição, ganhou uma assinalável visibilidade pública neste início de milénio. Em 2004, o papa João Paulo II pediu perdão pelos “crimes” da Inquisição. Foi um gesto universalmente bem recebido. Contudo, e simultaneamente, o Vaticano divulgava as actas de um simpósio realizado à porta fechada, após investigação levada a cabo exclusivamente por historiadores afectos à Igreja Católica, de que resultou a sua principal conclusão: os crimes da Inquisição não foram assim tão grandes como se imaginava. Estava dado o mote para o branqueamento daquele tenebroso tribunal católico. A Igreja Católica, com uma mão pediu perdão, com a outra minimizou o papel do Santo Ofício.
Reflexo dessa estratégia concertada de desculpabilização foram as recentes afirmações do padre João Seabra num debate televisivo (RTP Memória, 7/11/2005), em que se revelou muito indignado com a evocação dos quase três séculos de terror inquisitorial e acção exterminadora do judaísmo português. Perante os números apresentados (que aceitou como bons), o padre João Seabra, inusitadamente, concluiu que se estava a exagerar, pois, afinal de contas, só haviam sido queimadas nas fogueiras 5 pessoas por ano! Coisa pouca… Isso é o mesmo que dizer que as mais de 70 pessoas que morreram ao atravessar o Muro de Berlim durante os 28 anos de existência (1961-1989) não é nada de importante. Afinal, apenas morreram entre 2 e 3 pessoas por ano! Igualmente, os mortos no campo de concentração do Tarrafal, entre 1937 e 1945 só foram 30, ou seja, 3 presos políticos antifascistas por ano. Nada de significativo! Inútil será, pois, invocar as dezenas de milhares de presos que passaram pelos cárceres da polícia política entre 1926 e 1974.
Para os negacionistas do verdadeiro papel da Inquisição, o que interessa é que a percentagem de executados foi muito baixa e, portanto, o crime não foi assim tão grave. Muito para além desta enormidade, ainda para mais vinda de um conhecido sacerdote católico, convenhamos que, na verdade, tem sido este o sentido da abordagem do papel da Inquisição na sociedade portuguesa, o que corresponde ao tratamento tendencial do tema pela historiografia portuguesa. Com efeito, o ensino da História de Portugal, para além de obliterar a história dos judeus portugueses, remete a Inquisição para um episódico assunto que não vale mais do que os cinco minutos que os professores de História das nossas escolas básicas e secundárias geralmente dedicam ao seu ensino.
A raiz do problema está no próprio estado dos estudos inquisitoriais nas nossas universidades. Não foi por acaso que o último congresso realizado em Portugal sobre a Inquisição partiu da iniciativa de dominicanos e que lá se afirmou que aqueles frades eram escolhidos para a função de inquisidores em consequência do seu reconhecido saber e competência, sem que um único historiador presente recordasse que não se tratava da escolha de meros funcionários públicos, mas de algozes (Congresso Internacional Inquisição Portuguesa: Tempo, Razão e Circunstância, Lisboa, Outubro de 2004). Revelador!
Antes de se ter inventado o horror dos campos de extermínio nazis, não havia memória de horror maior do que o da Inquisição. Com efeito, a Inquisição exterminou as comunidades judaicas portuguesas e perseguiu-as no seu vasto império, à semelhança do que a “Solução Final” fez na Europa. Tanto num caso como noutro, o balanço é devastador. Partilhamos a opinião de Joshua Ruah, que considera que a Inquisição foi responsável por um “Holocausto português”.
De sinal contrário foi o inequívoco pedido de perdão de Mário Soares, então presidente da República, proferido na Sinagoga de Castelo de Vide, em 1989, complementado pela revogação do édito de expulsão pelo Parlamento em 1996. Quanto à posição dos negacionistas católicos, apetece-nos parafrasear Luiz Pacheco (“A Pide nunca existiu”) e concluir que só falta aos arautos do branqueamento do criminoso tribunal católico sentenciarem: A Inquisição nunca existiu!...
Jorge Martins (texto originalmente publicado na revista História, Lisboa, Nº 92, Dezembro 2006, pp. 52-59)
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