Mitificada como atributo feminino, a feitiçaria não foi uma acusação exclusiva das mulheres. Com efeito, em 770 processos inquisitoriais que descortinámos, 510 eram relativos a mulheres (66%) e 260 a homens (34%). Os homens representam, pois, um terço dos processos instaurados pela Inquisição sob acusação de feitiçaria.
Muito associada à feitiçaria estava a bruxaria. Foram 150 (20% dos 770), os casos encontrados de réus acusados de ambas as heresias. Se considerarmos todos os processos de bruxaria (com ou sem feitiçaria associada), teremos resultados semelhantes: em 228 processos, houve 153 mulheres (67%) e 75 homens (33%).
Quanto ao mito das bruxas ou feiticeiras queimadas pela Inquisição, não se aplica ao caso português. Na realidade, queimaram-se mais por judaísmo (cerca de 80% da totalidade dos processos inquisitoriais) do que por qualquer outro motivo. Pesquisando na Torre do Tombo on-line, Não encontrámos mais do que sete casos de réus relaxados à justiça secular: 3 mulheres e 4 homens, entre os quais o tristemente célebre Padre Gabriel Malagrida. Uma mulher e um homem queimados por bruxaria e feitiçaria; outra mulher e outro homem queimados por feitiçaria e superstições. Coisa pouca para que se possa alimentar o mito, a que podemos acrescentar acusações similares de uma mulher e um homem, por visões e revelações.
Fica, de certo modo, assim desfeito o mito dos milhares de bruxas e feiticeiras queimadas em auto-de-fé pela Inquisição em Portugal. Bem bastam as dezenas de milhares que sofreram as agruras dos cárceres, muitos deles acrescidos de tortura e cerca de 5 ou 6% que foram queimados nas fogueiras. Infelizmente, não é preciso exagerar ou inventar números. Pelo contrário, isso só contribui para descredibilizar os estudos sérios e alimentar o negacionismo dos crimes da Inquisição a que temos assistido nos últimos anos, justamente a pretexto dos exageros que proliferam.
Quanto à relação entre bruxaria ou feitiçaria e judaísmo, identificámos apenas 31 cristãos-novos processados por feitiçaria, bruxaria, superstições, visões e revelações. Como se constata, também são uma minoria, o que contraria igualmente alguns estudos que pretendem associar a bruxaria e a feitiçaria ao judaísmo. Acresce que não podemos deixar de sublinhar que o facto de serem cristãos-novos não garante serem judeus. Embora não haja estudos estatísticos, sabe-se que muitos cristãos-novos foram perdendo as ligações ao judaísmo dos seus antepassados, acabando por ser assimilados pelo cristianismo.
Obviamente, este levantamento não estará completo, pois a informação disponível online pela Torre do Tombo, embora muito útil, contém naturais insuficiências e omissões informativas sobre cada processo que contempla. Contudo, constitui uma ampla amostra entre as dezenas de milhares de processos inquisitoriais.
Deixamos aqui o último parágrafo da sentença da cristã-velha Mécia da Costa, natural de Tavira e moradora em Faro, presa a 9 de março de 1742 e queimada por relapsia em feitiçaria no auto-de-fé de 21 de junho de 1744:
“Christi Jesu nomine invocati. Relaxam a Ré Mécia da Costa por convicta, relapsa no crime de feitiçaria; e que foi e ao presente é herege, apostata de nossa Santa Fé Católica, e que incorreu em sentença de excomunhão maior, confiscação de todos os seus bens, para o fisco e câmara rela, e nas mais penas em Direito contra semelhantes estabelecidas. E mandam vá ao Auto público da Fé na forma costumada, com carocha e rótulo de feiticeira e nele ouça sua sentença, e como herege apostata de nossa Santa Fé Católica, convicta, negativa, pertinaz e relapsa, a condenam, e relaxam à justiça secular, a quem pedem com muita instância, se haja com ela benigna, e piedosamente, e não proceda à pena de morte, nem efusão de sangue.”
(Arquivo Nacional Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo nº 6973-1)
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